Pela terceira vez neste
evangelho a festa da Páscoa é mencionada. Em Levítico 23, é falado como uma das
“festas do Senhor”, mas no evangelho
de João é sempre uma festa dos judeus, em consonância com o fato de que Jesus é
considerado como rejeitado por Seu povo desde o início, e consequentemente eles
e suas festas são desconsiderados por Deus. Os líderes religiosos estavam prestes
a coroar a infâmia deles usando a Páscoa como uma ocasião para abranger a morte
do Filho de Deus. A culpa deles não foi diminuída pelo fato de que Deus suplantou
sua ação para o cumprimento da figura, em que “Cristo, nossa Páscoa, foi sacrificado por nós”.
Seis dias antes da Páscoa,
Jesus veio a Betânia, de modo que tudo que foi registrado entre João 12:1 e João
20:25 cai num breve período de sete ou oito dias – certamente a semana mais maravilhosa
da história do mundo. No lar de Betânia viviam os três que eram objetos de Seu
amor e que O amavam em contrapartida. Uma oportunidade adequada tinha chegado
agora para eles testemunharem isso. Por trás deles estava a morte de Lázaro e o
seu chamado à vida pela voz do Filho de Deus. Logo adiante está a morte e ressurreição
do próprio Filho de Deus.
No final de Lucas 10,
vemos esse lar marcado por alguma medida de desordem e queixa; mas aqui, após
a manifestação do poder da ressurreição do Senhor, tudo é encontrado em ordem e
harmonioso. Os simples procedimentos daquela noite estavam centralizados em Cristo.
Ele era o objeto de honra de cada um e de todos, e “fizeram-Lhe, pois ali uma ceia”. Podemos, de fato, ver uma parábola
nisso. Quando Cristo é o Objeto supremo e Seu poder de ressurreição é conhecido,
tudo entra em seu devido lugar.
Marta foi a anfitriã e
serviu-Lhe. Lázaro teve sua parte com Ele à mesa da ceia. Maria expressou a devoção
de seu coração a Ele, despendendo n’Ele o caro unguento que tinha. Assim vemos como
o conhecimento d’Ele e do poder de Sua ressurreição conduz ao serviço, à comunhão
e à adoração. Tudo estava em uma feliz ordem e, porque assim estava, a voz da crítica
hostil foi ouvida, centrada na ação de Maria. Originou-se de Judas Iscariotes, embora
os outros discípulos ecoassem as palavras dele, como mostra o evangelho de Mateus.
O mundo é incapaz de apreciar
a verdadeira adoração e, apesar da sua aparência justa, Judas era totalmente mundano.
Governado pela cobiça, Judas tornara-se ladrão; e não apenas um ladrão, mas um hipócrita,
mascarando sua busca pessoal alegando ter cuidado dos pobres. Ele posava como um
homem eminentemente prático, totalmente vivo para o valor de benefícios sólidos
e materiais para os pobres, enquanto, na sua opinião, acusava Maria de
desperdiçar a valiosa substância, movida por um sentimento tolo. O mundo é exatamente
dessa opinião hoje. A religião que se combina com o que o mundo aprecia é aquela
que coloca toda a ênfase nos benefícios materiais e terrestres para a humanidade.
E hoje, tanto quanto naquela época, crentes com mente carnal tendem a estar de acordo
com o mundo e a ecoar suas opiniões.
Ao dizer: “Deixai-a”, Jesus silencia a crítica hostil.
Esta palavra pode bem ser escrita em nossa memória. A adoração verdadeira está entre
a alma do crente e o Senhor, e nenhum outro deve interferir. Em Romanos 14, o crente
é visto como um servo, e o espírito desse capítulo novamente é: “Deixai-o”. Além disso, o Senhor sabia como
interpretar a ação dela. Ele deu, sem dúvida, uma explicação mais completa
sobre essa ação do que a própria Maria poderia ter apresentado; embora ela conhecesse
o ódio dos líderes e intuitivamente percebesse a Sua morte se aproximando. É significativo
também que Maria de Betânia não se juntou às outras mulheres para visitar Seu túmulo
com as especiarias que haviam preparado.
De Maria podemos dizer
que o que ela fez foi feito “por amor de Jesus apenas”. Com Judas era “os pobres” e, mesmo com os outros discípulos,
era “Jesus e os pobres”. Com muitos dos judeus que se reuniram em Betânia neste
momento, era “Jesus e Lázaro”, pois eles estavam curiosos para ver um homem que
havia sido ressuscitado dentre os mortos. A família de Betânia tinha se concentrado
em Jesus a sua verdadeira afeição. Em contraste, os principais sacerdotes concentraram-se
n’Ele, o ódio mais mortal, que os cegou de tal maneira que eles consideraram em
matar Lázaro, o testemunho de Seu poder. Eles eram os mais religiosos, mas os mais
inescrupulosos. Eles esqueceram o aviso do Salmo 82:1-5.
No dia seguinte, Jesus
apresentou-Se a Jerusalém como o Rei de Israel, exatamente como o profeta Zacarias
havia dito. Nenhum mero Soberano da Terra poderia se permitir apresentar-se formalmente
à sua capital de maneira tão humilde; mas para aqu’Ele que era o Verbo feito carne,
toda essa glória, como então era possível, teria sido perda, e não ganho. Esta ocasião
está registrada em cada um dos quatro evangelhos, mas João reconhece dois detalhes
especiais. Primeiro, há o contraste entre os discípulos e seu Mestre, que sempre
soube exatamente o que faria (Jo 6:6). Eles participaram sem qualquer entendimento
do que estavam fazendo. O significado de tudo isso só se aclarou sobre eles quando receberam o Espírito Santo,
como consequência de Jesus ter sido glorificado. Segundo, há o fato de que a medida
do entusiasmo popular manifestado foi despertado pela ressurreição de Lázaro, na
qual Sua glória como o Filho de Deus havia sido manifestada.
Em seguida, podemos ver
o efeito de tudo isso em três direções. Os fariseus estavam amargamente mortificados,
atribuindo à demonstração do povo uma convicção de profundidade inexistente. Mas
entre alguns gregos que tinham chegado à festa havia um espírito de indagação e
seu desejo de ver Jesus era a indicação do dia em que “E as nações caminharão à Tua luz, e os reis ao resplendor que Te nasceu
[da Tua aurora – TB]” (Is 60:3). E de fato agora era o momento
em que Ele deveria ter sido recebido e aclamado por Seu próprio povo. A hora havia
chegado quando, como o Filho do Homem, Ele deveria ter sido glorificado. No que
diz respeito ao próprio Senhor, Ele sabia bem que como o Rejeitado nada além da
morte estava diante d’Ele – a morte que seria a fundação de toda a glória nos dias
vindouros. Dessa morte, portanto, Ele começou a falar.
No versículo 24, encontramos
outra de Suas grandes declarações introduzidas com ênfase especial. A vida que permanece
e floresce em muitos frutos só é alcançada pela morte. Se o fruto para Deus deve
ser colhido – fruto esse que será da mesma ordem que Ele mesmo – Ele deve morrer.
Emanuel estava aqui, o Verbo Se fez carne, e Seu valor intrínseco e beleza estão
além de todas as palavras; mas somente por meio da morte Ele “frutificaria e Se
multiplicaria” (Gn 1:22), de modo que uma multidão de outros “conforme a Sua espécie” possa ser achada
para a glória de Deus. Foi isso que encheu Seus pensamentos enquanto outros ainda
estavam pensando em glória terrena.
Fruto para Deus, então,
é o primeiro resultado de Sua morte que Ele mencionou. A segunda é a nova ordem
de vida na Terra, que, portanto, seria conferida aos Seus discípulos. Ele estava
prestes a dar a Sua vida neste mundo, totalmente perfeita como era. A vida neste
mundo está para nós totalmente manchada pelo pecado e sob julgamento. Se a amarmos,
iremos apenas perdê-la. Ao vê-la em sua verdadeira luz, aprendemos a aborrecê-la
e, assim, mantemos esta vida para a vida eterna – a única vida que vale a pena ter.
Isto é para nós um duro ditado, mas de extrema importância, pois podemos perceber
do fato de que Jesus proferiu palavras de semelhante importância em outras três
ocasiões, e estas quatro palavras são registradas seis vezes nos quatro evangelhos.
Nenhuma outra declaração de nosso Senhor é repetida para nós como essa. Não é demais
dizer que nossa estatura espiritual e prosperidade são determinadas pela medida
em que essas palavras deixam sua impressão em nosso coração e vida.
O versículo 26 brota naturalmente
do versículo 25. Só podemos realmente servir o Senhor quando O seguimos, e só O
seguimos realmente, quando a nossa atitude para com a vida é a mesma que a d’Ele.
Ele não amava a Sua vida neste mundo quando, como o grão de trigo, Ele caiu no chão
e morreu. O apóstolo Paulo entrou nesse espírito, como podemos ver por Escrituras
tais como 2 Coríntios 4:10-18 e Gálatas 2:20; 6:14. E como servo de Cristo, ele
supera a todos nós. A recompensa do servo é estar com seu Mestre e ser honrado pelo
Pai.
Em outra ocasião, Jesus
disse que todo servo, quando aperfeiçoado, deve ser “COMO o seu Mestre” (Lc 6:40). Aqui achamos que ele deve estar COM o
seu Mestre. E ainda há algo mais. “e se alguém
Me servir” – quem é esse “ME”? O
humilde e rejeitado Filho de Deus! Quem O serve na hora de Sua impopularidade e
rejeição? Tais serão honrados pelo Pai, e as honras serão publicamente deles quando
chegar o dia da grande revisão diante do tribunal de Cristo. As mais elevadas honras
do mundo são apenas ouropel comparadas com isso.
O evangelho de João não
faz menção aos sofrimentos do Getsêmani, mas podemos ver aqui como sendo o peso
da aproximação de Sua morte colocado sobre Sua alma. Sua Divindade não abrandou
a Sua aflição; antes, deu-Lhe uma infinita capacidade de senti-la. Ele não podia
desejar a hora que se aproximava: Seu perfeito conhecimento e Sua infinita santidade
levaram-No à necessidade de Se afastar dela, mas Sua oração não era para ser salvo
dela, mas para que o nome do Pai fosse glorificado nela. Esse desejo foi tão perfeito,
tão completamente prazeroso para o Pai, que uma voz foi ouvida do céu. Os outros
evangelhos nos contaram como a voz do Pai foi ouvida em Seu batismo e em Sua transfiguração.
Essas foram ocasiões mais privadas, e parece que não houve dificuldade em entender o que foi dito. Aqui, diante de Sua morte,
a voz era mais pública e destinada aos ouvidos do povo; embora eles não a recebessem,
explicaram o som que ouviram como a voz de um anjo ou de um ressoar de um trovão.
Deus falou aos homens de forma audível e direta, mas eles não fizeram caso disso!
Na condição caída do homem, isso deveria ser sempre assim.
A resposta do Pai foi
que Seu nome já havia sido glorificado em todo o caminhar de Jesus aqui embaixo,
e mais particularmente na ressurreição de Lázaro; e Ele iria glorificá-lo novamente
na morte e ressurreição de Seu Filho. Este então é outro grande resultado da morte
do único “grão de trigo”. Há a produção
de muito fruto; o que envolve a entrada em um novo tipo de vida e serviço pelo discípulo:
há a glorificação do nome do Pai. E ainda há mais, pois o versículo 31 traz o mundo
e seu príncipe à vista.
Na cruz estava o julgamento
deste mundo. Nosso idioma se apropriou das palavras gregas usadas aqui. Aconteceu
a “crisis” (julgamento) deste “cosmos” na cruz. Cosmos significa uma cena ordenada em contraste com
o caos, mas, infelizmente, este cosmos caiu sob a liderança do diabo. Agora a morte
de Cristo expôs o mundo em seu verdadeiro caráter, trazendo-o assim sob justa condenação.
Ele também destruiu o poder e legalmente despojou o usurpador, que havia se tornado
o príncipe do mundo. O que parecia ser seu maior triunfo era, na verdade, sua total
derrota.
Este maravilhoso desdobramento
dos resultados de Sua morte veio dos lábios do Senhor, e caracteristicamente Ele
colocou em último lugar seu resultado em relação a Si mesmo. Ao mencionar isso,
Ele significou a crucificação como a maneira de Sua morte. Ora, este era o modo
romano de executar a sentença de morte, mas vendo que toda a animosidade contra
Ele estava no sentimento do judeu, significava que Ele morreria na mais absoluta
vergonha, repudiado tanto por judeus como por gentios. Ele foi levantado da Terra
para que pudesse ser desdenhosamente repudiado – o destruidor caiu, por assim dizer,
sobre Sua causa e Seu Nome. E o resultado alcançado é precisamente o oposto. Aqu’Ele
que uma vez foi crucificado é para ser o Objeto universal e eterno de atração! Todos
os que são atraídos para o poderoso círculo de bênção de Deus serão atraídos por Ele
e para Ele. Aqui temos em forma embrionária o que é mais completamente exposto em
Efésios 1:9-14. Longe de extinguir Sua glória, a cruz torna-se o fundamento sobre
o qual ela repousa – a base para a sua mais perfeita demonstração, como é tão comovente
testemunhado em Apocalipse 5:5-14.
As palavras iniciais de
Jesus falaram do Filho do Homem sendo glorificado, e Suas palavras finais de
Ele sendo levantado. Os judeus sabiam que o Messias deveria permanecer quando Ele
viesse, e o título “Filho do Homem” não
era desconhecido para eles, pois é encontrado no Velho Testamento. O Filho do Homem
que receberia o reino de acordo com Daniel 7, eles conheciam, mas Quem era este
Filho do Homem que deveria sofrer? Eles tinham negligenciado o Filho do Homem feito
um pouco menor do que os anjos, de acordo com o Salmo 8. Este humilde Filho do Homem
era a luz dos homens. A não ser que eles cressem na luz e se tornassem filhos da
luz, trevas absolutas viriam sobre eles e estariam perdidos. Com este aviso, Jesus
retirou-Se deles.
Um resumo da situação
até este ponto é fornecido pelo evangelista nos versículos 37-43. Jesus havia feito
muitos sinais diante deles, mas eles não criam n’Ele. O fato era este: eles estavam
cegos. A cegueira dos olhos dos homens é a obra do deus deste século, como aprendemos
em 2 Coríntios 4:4. No entanto, há momentos em que Deus permite que isso ocorra
em retribuição governamental e, portanto, pode ser atribuído a Ele. Tal foi o caso
aqui; tal foi nos dias de Isaías; e assim foi novamente cerca de 35 anos depois,
quando o testemunho do Cristo glorificado foi recusado (ver Atos 28:25-27). A geração
incrédula persiste, e ainda será encontrada quando o julgamento final cair no fim
do século.
Em Isaías 6, o profeta
registra como ele viu “o Rei, Jeová dos
exércitos” (Is 6:6 – TB). João nos diz, no entanto, que Isaías “viu a Sua glória e falou d’Ele”; evidentemente
referindo-se a Jesus. Novamente, o versículo 40 do nosso capítulo está registrado
em Isaías 6 como “a voz do Senhor”. Em
Atos 28, Paulo cita isso como o que foi dito pelo Espírito Santo. Isso lança
uma luz útil sobre a unidade das Pessoas Divinas. Não podemos dividi-Las, embora
possamos distingui-Las.
O efeito dessa cegueira
foi que eles “não podiam crer”. A mente
deles estava tão obscurecida que a fé se tornara uma impossibilidade moral. Não
importa o quão brilhante a luz reluzia diante deles, eles não tinham olhos para
percebê-la. Havia, no entanto, alguns – e estes entre os principais – que não estavam
completamente cegos dessa maneira. A mente deles estava aberta à evidência e os
sinais mostrados produziram a convicção intelectual neles. Agora, a convicção intelectual,
embora seja um ingrediente essencial da fé viva, não é viva por si só. Não frutifica
nas obras, mas é “como o corpo sem espírito”
(Tg 2:26). Fé viva conduz a alma a Deus por
meio de Cristo. Isso era desconhecido por esses principais, pois, se tivessem a
experimentado, não teriam amado mais o louvor dos homens do que o louvor de Deus.
O mesmo teste se aplica hoje. Aquele que realmente crê em seu coração que Deus ressuscitou
Cristo dos mortos, não deixará de, com a boca, confessá-Lo como Senhor. Se os homens
não confessarem, eles não creem realmente.
Nos versículos 44-50,
recebemos o próprio resumo do Senhor sobre a situação, quando Ele encerrou Seu testemunho
ao mundo. Em João 3-7, o pensamento proeminente é a vida, e Jesus é visto como o
Doador de vida. De João 8 até o presente ponto, a luz tem sido um grande tema, e
Jesus é visto como o Portador da luz. João 8:12 dá o pronunciamento de abertura
do Senhor quanto a isso, e o versículo 46 de nosso capítulo, a palavra de conclusão.
Apenas emergimos das trevas quando entramos na luz de Cristo. Mas a luz que brilhou
n’Ele era a revelação completa de Deus, de modo que aquele que entra em Sua luz
crê e vê aqu’Ele que O enviou. Sendo o Verbo feito carne, Ele não era menor do que
o Pai que Ele revelou, contudo Ele havia tomado o lugar de sujeição, a fim de torná-Lo
conhecido e cumprir todos os Seus mandamentos.
Naquele momento, o mandamento
do Pai não era o julgamento, mas a vida eterna, por isso Ele havia Se escondido
de Seus adversários, em vez de destruí-los pelo Seu poder. O julgamento ainda virá
na época devida; o Juiz está nomeado e, com base na revelação que Ele trouxe, eles
serão julgados. O Senhor agora Se encaminha à obra imediatamente diante d’Ele, para
“salvar o mundo” e trazer “vida eterna”. Por isso, Ele continuou a
falar segundo o mandamento do Pai e também, como Ele declara no capítulo
14:31, fazer o Seu mandamento,
que envolveu a cruz como a base necessária de ambas – salvação e vida. A coisa imediata
diante d’Ele era a reunião de Seus discípulos pela última vez, para que Ele pudesse
comunicar-lhes plenamente os desígnios atuais do amor do Pai.