quinta-feira, 29 de agosto de 2019

JOÃO 10

JOÃO 10


Na verdade não há uma interrupção onde este capítulo começa em nossas Bíblias. A resposta do Senhor, que começou no último versículo do nono capítulo, continua até o final do versículo 5 deste capítulo. Ele lhes propôs a parábola do Pastor e do rebanho, e ilustrou o ponto, visto que não havia apenas “as ovelhas”, mas também as “Suas próprias ovelhas” (ARA). Estas últimas conheciam a voz do Pastor e assim O reconheceram. O homem do capítulo anterior era uma das “Suas próprias ovelhas”.
O sistema religioso instituído por meio de Moisés era como um aprisco[1]. Desse modo, os judeus foram separados dos gentios, aguardando a vinda do verdadeiro Messias. A porta de entrada havia sido prescrita pelas vozes dos profetas: Ele devia nascer de uma virgem, em Belém etc. Impostores haviam aparecido, mas sem essas credenciais, eles haviam procurado uma entrada de alguma outra forma e, por isso, se denunciaram. Agora o verdadeiro Pastor aparecia entrando pela porta, que havia sido mantida aberta para Ele pela providência de Deus. Foi dito: “Eis que não tosquenejará nem dormirá o Guarda de Israel” (Sl 121:4), e aquele olhar e mão vigilantes impediram que Herodes fechasse a porta de entrada para Ele. Deus providenciou para que Ele tivesse pleno acesso às ovelhas.
Mas agora vem o que ninguém havia antecipado: Ele entra no aprisco não para reformá-lo ou melhorá-lo, mas para chamar uma eleição dentre a massa – “Suas próprias ovelhas” – e conduzi-las a algo novo. Israel tinha sido a nação eleita, mas agora é inteiramente individual, pois Ele chama Suas próprias ovelhas “pelo nome”, estabelecendo contato pessoal com cada uma delas. Além disso, Ele as lidera, saindo primeiramente Ele mesmo: elas O seguem porque esse contato existe e elas reconhecem Sua voz e confiam n’Ele. No começo deste evangelho, esses eleitos eram chamados de “nascidos... de Deus”, sendo “todos quantos O receberam” (Jo 1:12-13).
As ovelhas de Cristo não seguem estranhos, não porque tenham um amplo conhecimento deles e conheçam bem suas vozes, mas porque “não conhecem a voz dos estranhos”. Elas conhecem bem a voz do pastor e isso é suficiente. Quanto a todos os outros, elas simplesmente dizem: Essa não é a voz do pastor. Temos aqui em forma de parábola o mesmo fato básico como João declarou, quando escreveu às crianças da família de Deus, dizendo: “Não vos escrevi porque não soubésseis a verdade, mas porque a sabeis, e porque nenhuma mentira vem da verdade” (1 Jo 2:21). Como Paulo também diz que devemos ser “sábios no bem, mas símplices no mal” (Rm 16:19). Vamos cultivar esse conhecimento com nosso Senhor, pois isso desenvolve um instinto espiritual que preserva nossos pés de se afastarem.
Cegos como sempre, os fariseus não entendiam nenhuma dessas coisas; mas isso não impediu o Senhor de seguir Sua parábola um pouco mais adiante. Ele era a própria porta; pois toda saída do aprisco, e toda entrada no novo lugar de bênção a ser estabelecido, deve ser por Ele. Essa nova bênção de que geralmente falamos como Cristianismo, em contraste com o judaísmo. O versículo 9 começa a enumerar as bênçãos. A linguagem de parábola ainda é usada, como evidenciado pela palavra “pastagens”, mas ao dizer: “se alguém entrar”, Jesus mostrou que Ele estava falando de acordo com aquele grande capítulo do Velho Testamento que termina: “Vós pois, ó ovelhas Minhas, ovelhas do Meu pasto: homens sois” (Ez 34:31).
A bênção inicial do Cristianismo é a salvação. Ela nos encontra quando entramos por Cristo, a porta. A maioria das referências à salvação no Velho Testamento tem a ver com a libertação de inimigos e problemas. A emancipação espiritual que nos vem pelo evangelho não poderia ser conhecida naquela época, uma vez que a obra em que se baseia não havia sido realizada. Que Hebreus 9:6-14 e 10:1-14 seja lido e digerido interiormente, e este fato se fará muito claro. Somente pela morte e ressurreição de Cristo a porta é aberta para a salvação em sua plenitude.
As palavras “entrará e sairá” indicam liberdade. No judaísmo, não havia liberdade de acesso a Deus, visto que “o caminho para o Santo dos Santos ainda não havia sido feito manifesto” (Hb 9:8 – JND); nem tinham permissão para sair para as nações e espalhar qualquer conhecimento de Deus que tivessem. Eles foram trancados no aprisco da lei de Moisés e suas ordenanças, e lá eles tiveram que ficar. Como Cristãos, temos “ousadia para entrar no santuário [Santo dos Santos – ARA] pelo sangue de Jesus”, e podemos sair como os primeiros crentes que “iam por toda parte, anunciando a palavra” (At 8:4). Em ambas as direções, somos levados muito além dos privilégios do aprisco judaico.
Então, em terceiro lugar, podemos “achar pastagens”. Isso pode levar nossos pensamentos de volta a Ezequiel 34, onde encontramos uma tremenda acusação aos antigos pastores de Israel. Estes líderes religiosos alimentaram a si mesmos e não às ovelhas, e deram um exemplo tão ruim, que os mais fortes entre as ovelhas oprimiam os mais fracos e tinham “pastado o bom pasto”, e com seus pés haviam pisado “o resto de vossos pastos” (Ez 34:18). Consequentemente, para os pobres do rebanho não havia pasto algum. Jesus, o verdadeiro Pastor de Israel, conduz Suas próprias ovelhas a uma abundância de alimento espiritual.
Nos versículos 10 e 11, obtemos o contraste entre o ladrão e o Bom Pastor. Esses ladrões e roubadores eram homens como os mencionados por Gamaliel em Atos 5:36-37; impostores egoístas que trouxeram destruição e morte. O verdadeiro Pastor trouxe vida; entregando Sua própria vida para fazer isso. Se Ele não tivesse vindo e morrido, não haveria vida alguma para homens pecadores; tendo feito isso, a vida é disponibilizada, e é concedida em abundante medida à Suas ovelhas. Vivemos à luz da abundante revelação de Deus que nos alcançou no Verbo feito carne, por isso temos abundância de vida. A vida dada aos santos em todas as épocas pode ser intrinsecamente a mesma, mas sua plenitude só pode ser conhecida sendo Deus plenamente revelado. Isso é indicado em 1 João 1:1-4.
Em seguida, temos, nos versículos 12-15, o contraste entre o mercenário e o Bom Pastor. O mercenário não é necessariamente mau como o ladrão; mas sendo um homem que trabalha por salário, seu interesse é primordialmente monetário. As ovelhas são de interesse para ele, na medida em que são o meio de seu sustento. Ele realmente não se importa tanto com elas a ponto de arriscar sua pele por elas. É muito diferente com o Pastor, que dá a vida por elas e estabelece um elo de maravilhosa intimidade. Suas ovelhas são homens e, portanto, capazes de conhecê-Lo de maneira íntima; tanto que Seu conhecimento dos homens e o conhecimento dos homens em relação a Ele podem ser comparados ao conhecimento do Pai do próprio Filho e o conhecimento do Filho do Pai. E devemos lembrar de que é pelo conhecimento d’Ele que chegamos a conhecer o Pai. Nada parecido com isso foi possível no aprisco judaico antes do Pastor chegar.
As palavras do Senhor no versículo 16 acrescentam outra revelação inesperada. Ele estava prestes a encontrar ovelhas que tinham estado fora daquele aprisco. Haveria o chamado de uma eleição dentre os gentios. Vemos o início deste princípio em Atos – o etíope em Atos 8, Cornélio e seus amigos em Atos 10. Muitas vezes, insistimos na palavra “necessário”[2] que ocorre várias vezes em João 3: alguma vez já louvamos a Deus por esse “necessário [Me convém – ARC] (TB) aqui? – “estas também é necessário que Eu as traga” (TB). Os pecadores dentre os gentios tornam-se os objetos da obra divina. Eles ouvem a voz do Pastor e são ligados a Ele. Então, como resultado deste duplo chamado – do aprisco judaico e dos gentios desgarrados – deve ser estabelecido um rebanho, mantido unido sob a autoridade do único Pastor. A palavra final neste versículo é definitivamente “rebanho” e não “aprisco” (como na KJV). Ovelhas mantidas juntas por restrições externas: isso era o judaísmo. Ovelhas constituindo um rebanho pelo poder pessoal e atração do Pastor: isso é Cristianismo.
Mas, para isso, não apenas a morte, mas a ressurreição também era necessária. O Pastor realmente teve que ser ferido como o profeta havia predito, mas é em Sua vida ressuscitada que Ele reúne Seu rebanho de entre judeus e gentios. Jesus prosseguiu mostrando que a Sua morte foi com a finalidade de Sua ressurreição. Ambas são vistas aqui como Seu próprio ato. Sua morte foi Ele dar a Sua vida: Sua ressurreição foi Ele tornar a tomá-la, embora sob novas condições. Em ambas Ele agia de acordo com o mandamento do Pai; e fornecendo ao Pai um novo motivo para o Seu amor para com o Filho.
As palavras do Senhor, registradas no versículo 18, estão plenamente de acordo com o caráter deste evangelho. Conforme registrado em outros evangelhos, Ele falou repetidas vezes a Seus discípulos sobre como Ele deveria ser entregue aos gentios, pelos principais sacerdotes e governantes, para que fosse entregue à morte; todavia aqui Ele afirma que nenhum homem tiraria Sua vida, pois tanto a morte como a ressurreição seriam Seus próprios atos. Os homens fizeram a Ele aquilo que, para qualquer mero homem, tornaria a morte inevitável; no entanto, no Seu caso, nada teria qualquer efeito, se Ele não tivesse ficado satisfeito em dar Sua vida. Sua Divindade é enfatizada, mas também a verdadeira Humanidade que Ele assumiu em sujeição à vontade de Deus, pois tudo estava de acordo com o mandamento do Pai. A vida estava n’Ele e era “a luz dos homens” (Jo 1:4), mesmo quando Ele estava aqui, mas agora Ele deve tomar a Sua vida em ressurreição, e assim Ele deveria tornar-Se a própria vida daqueles que são Seus no poder do Espírito, como indicado em João 20:22.
Por essas parábolas, o Senhor forneceu aos judeus um resumo das grandes mudanças que estavam próximas como resultado de Sua vinda como o verdadeiro Pastor no meio de Israel. O programa Divino foi aberto a eles, mas o propósito de Deus cortou contra a fibra dos autossuficientes pensamentos deles, e Suas palavras soaram para muitos como as palavras de alguém que está fora de si ou algo ainda pior. Outros, impressionados com o milagre do cego, não podiam aceitar essa opinião extrema. Como os versículos seguintes mostram, eles tomaram o lugar de “honestos duvidosos”, mas desejavam insinuar que Sua ambiguidade era o motivo da vacilação deles. O problema estava, porém, não em Suas palavras, mas na mente deles. Foi assim com seus antepassados quando a lei foi dada e “para que os filhos de Israel não fixassem os olhos no final daquilo que se desvanecia” (2 Co 3:13 – TB); isto é, eles nunca viram o propósito de Deus nisso tudo. Ora o orgulho religioso estava colocado como um véu na mente desses judeus e eles não podiam perceber “o final” das palavras do Senhor. Da mesma maneira, “o deus deste século” impõe um véu à mente dos incrédulos hoje; não importa quão capazes e aguçados possam ser nas questões comuns do mundo.
A demanda deles era: “Se Tu és o Cristo, dize-no-lo abertamente”. Jesus imediatamente afirmou que Ele já lhes havia dito claramente, e que Suas obras igualmente com Suas palavras haviam dado claro testemunho d’Ele. Então Ele falou-lhes claramente que a incredulidade deles colocou o véu sobre os olhos deles. A evidência estava ali clara o suficiente, mas eles não podiam ver; e o que estava por trás desse fato era que, apesar de serem Israel nacionalmente, eles não eram o verdadeiro Israel (Rm 9:6): eles não eram “Minhas ovelhas”, embora fossem ovelhas dentro do aprisco judaico, Eles estavam espiritualmente mortos e, portanto, não reagiam. Assim, Jesus lhes disse claramente não apenas a verdade sobre Si mesmo, mas sobre eles mesmos.
Tendo colocado uma sentença de juízo sobre eles, Ele acrescentou palavras do maior conforto e certeza para o benefício de Suas próprias ovelhas. Por um lado, elas ouvem a Sua voz e seguem-No e por outro lado, Ele as conhece e lhes dá a vida eterna. Isso garante que elas nunca perecerão sob o julgamento de Deus, e nenhum poder criado pode tirá-las da mão do Pastor. Esta garantia é reforçada pela perfeita unidade que subsiste entre o Filho e o Pai. O Filho tinha tomado o lugar de sujeição na Terra e o Pai permaneceu “maior do que tudo” (TB) no céu, mas isto não impediu a unidade d’Eles. Estar nas mãos do Filho envolvia estar nas mãos do Pai, e o propósito da Divindade em assegurar as ovelhas é garantido tanto pelo Filho quanto pelo Pai. Somos confrontados com o mesmo fato glorioso nessa importante passagem em Romanos 8:29-39.
Essas palavras levaram os judeus a intenções homicidas. Eles não entenderam o desvio deles, mas eles viram que, dizendo: “Eu e o Pai somos um”, Ele estava reivindicando igualdade com Deus. Poderia ter sido um pouco menos ofensivo se Ele colocasse o Pai em primeiro lugar dizendo: “O Pai e Eu”; mas não, era “Eu e o Pai”. Isso era intolerável para eles, pois não havia como alegar engano com palavras como essas. Para eles, era uma blasfêmia atroz – um homem fazendo-se Deus. Aceitamos Suas palavras no espírito de adoração, pois sabemos que Ele era verdadeiramente Deus, embora tenha Se feito Homem. Revogamos os termos da acusação deles e encontramos nas Suas palavras a verdade que salva as almas.
Em sua resposta, Jesus referiu-Se às Suas próprias palavras: “Sou Filho de Deus”, de modo a identificá-las com a acusação deles de fazer a Si mesmo Deus. Ele não defendeu Sua afirmação por uma de Suas próprias afirmações enfáticas, mas por um argumento baseado nas Escrituras deles. Aqueles reconhecidos como “deuses”, no Salmo 82:6, eram autoridades “a quem a palavra de Deus foi dirigida. Aqu’Ele que havia sido separado e enviado ao mundo pelo Pai era a própria Palavra – “o Verbo feito carne”. Quão grande a diferença! Não foi blasfêmia, mas verdade sóbria quando Ele disse: “Eu sou Filho de Deus”. Além disso, Suas obras deram testemunho de Sua reivindicação, como sendo inconfundivelmente as obras de Deus. Elas expuseram claramente o fato de que o Pai estava n’Ele, vividamente declarado e revelado; e Ele estava no Pai, quanto à vida e natureza essenciais. Uma vez que isso é conhecido e crido, não há dificuldade em recebê-Lo como o Filho de Deus, pois ambas as declarações estabelecem o mesmo fato fundamental, embora em palavras diferentes.
Mas ainda não havia chegado o momento do ódio assassino deles ter seu cumprimento, e em Sua retirada para o lugar do batismo de João, além do Jordão, a fé de vários tornou-se manifesta. O testemunho de João foi lembrado e a verdade de suas palavras foi reconhecida. João foi o último profeta da antiga dispensação e, em meio a suas ruínas, não era época de milagres. Chegou a ocasião e em medida completa, imediatamente o Cristo, o Filho de Deus, apareceu. Ainda assim, João deu um testemunho verdadeiro, fiel e inabalável de Cristo, que era melhor do que milagres. Estamos também no tempo final de uma dispensação, portanto, não ansiemos por milagres, mas imitemos a fidelidade de João em testemunho. Se pudesse ser dito de qualquer um de nós, diante do tribunal de Cristo, que todas as coisas que falamos de Cristo são VERDADEIRAS – isso seria realmente um elogio!


[1]  N. do T.: “Aprisco” (ou curral), segundo o Concise Bible Dictionary, é o sistema divinamente designado de ordenanças judaicas que formava o recinto no qual o Senhor entrou pela porta, a fim de encontrar Suas próprias ovelhas e conduzi-las para fora. Os crentes gentios foram acrescentados a elas, e eles se tornaram um rebanho (e não ‘um aprisco’) com um Pastor, o próprio Senhor (Jo 10:1, 3, 16). Não há mais um aprisco na Terra para os que são de Cristo. Eles foram tornados a Igreja, a saber, o único rebanho.
[2]   N. do T.: Nas versões em português a palavra grega “dei” no capítulo 3 do evangelho de João (ARC) é traduzida como “necessário” (vs. 3, 30) e “importa que” (v. 14). 

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