segunda-feira, 22 de julho de 2019

JOÃO 1


JOÃO 1

O evangelho de João foi claramente escrito algum tempo depois dos outros três evangelhos. Mateus, Marcos e Lucas contaram, em sua maneira divinamente inspirada, a história do nascimento, dos primeiros anos e da entrada no ministério de Jesus Cristo, e João considera esses relatos como reconhecidos, pois sem isso seus parágrafos iniciais dificilmente seriam inteligíveis. À medida que o primeiro século chegava ao fim, havia decorrido tempo suficiente para o lançamento de ataques à Pessoa de Cristo, como sendo a própria cidadela[1] da fé, e havia noções filosófico-pagãs, flutuando por toda parte e se ligando à doutrina, o que teria sido desastroso se elas não tivessem sido enfrentadas na energia do Espírito de Deus. Dessa forma, essa energia foi colocada nos escritos do apóstolo João, cerca de um quarto de século, ao que parece, depois que Paulo e Pedro terminaram suas carreiras.
Os primeiros Cristãos ficaram muito perturbados com os, assim chamados, “gnósticos”, isto é, os “conhecedores”. Tornamo-nos familiarizados com os agnósticos, que são pessoas que negam que seja possível qualquer conhecimento correto de Deus e de Suas coisas. Os gnósticos estavam no polo oposto: afirmavam serem iniciados e terem o conhecimento superior, mas suas teorias negavam tanto a Divindade essencial quanto a verdadeira Humanidade de Jesus. Depois houve aqueles que separaram Jesus do Cristo. O Cristo era para eles um ideal, um estado no qual o homem poderia se tornar; enquanto Jesus era o Homem histórico que apareceu em Nazaré. O evangelho que João escreveu enfrenta esses erros e foi escrito com esse propósito.
Antes de considerar as palavras de abertura, será bom ler os dois versículos que concluem João 20, pois neles está estabelecido o motivo diante da mente do Espírito ao escrever este evangelho. Os milagres registrados são todos “sinais” que provam que Jesus é o Cristo – de modo que não há separação entre os dois. Eles provam que Ele também é o Filho de Deus; estabelecendo assim a Sua Deidade. Com fé nessas coisas a vida é encontrada; enquanto recusá-las é permanecer na morte. Este é o objetivo do Espírito de Deus neste evangelho e precisaremos mantê-lo continuamente diante de nós enquanto avançamos através dele. Perceberemos que isso é uma chave muito importante para destrancar seus tesouros.
As palavras iniciais do primeiro versículo nos levam de volta ao momento mais remoto que nossa mente é capaz de conceber: o momento em que começou a primeira coisa que jamais teve um começo; o momento do outro lado no qual havia apenas – DEUS. Naquele momento de “princípio” o Verbo “era”, isto é, existia. Ele não começou ali; Ele existia então. Seu Ser eterno é proclamado e somos levados de volta para antes das palavras iniciais de Gênesis 1. Além disso, Ele estava “com Deus”. Nossa mente ainda está de volta àquele momento remoto, e descobrimos que ali Ele possuía Personalidade distinta. O Verbo não é um título da Divindade de uma maneira geral, à parte de qualquer distinção especial, pois, o estar “com Deus”, um lugar especial e distinto, é definitivamente declarado.
Sendo assim, a mente racional estaria inclinada a argumentar: então não podemos falar do Verbo como sendo Deus em qualquer sentido completo ou apropriado; mesmo que Ele não seja exatamente uma criatura, visto que Ele existia antes da criação. Tal raciocínio é categoricamente contradito pelas palavras finais do versículo 1, “o Verbo era Deus”. Deidade essencial era d’Ele. Tentativas foram feitas para enfraquecer a força desta grande declaração, e traduzi-la como “o Verbo era Divino”, ou “o Verbo era um deus”, baseada na omissão do artigo definido; isto é, não é dito: “o Verbo era o Deus”. Mas nos é dito por aqueles que conhecem o grego que não há nessa língua qualquer artigo indefinido, e a palavra traduzida por “Deus” é forte, indicando a própria e absoluta Deidade; e se tivesse afirmado que o Verbo era o Deus, teria confinado Deidade ao Verbo e excluída das outras Pessoas da Divindade. As palavras são escolhidas com precisão divina: o Verbo era propriamente e absolutamente Deus.
Então o segundo versículo nos leva de volta à primeira e segunda afirmações do versículo 1. Essa Personalidade distinta que descreve o caráter do Verbo não é algo que foi assumido em algum ponto subsequente do tempo. A Personalidade Eterna era d’Ele. No princípio Ele estava assim “com Deus”, pois essa distinção de Personalidade está na própria essência da Divindade. Assim, tivemos quatro coisas declaradas do Verbo. Seu Ser eterno; Sua Personalidade distinta; Sua Deidade essencial; Sua eterna Personalidade. Qualquer outra coisa que tenhamos que aprender sobre o Verbo, aqui estão quatro coisas que deveriam nos curvar em humilde adoração.
Somos confrontados com uma quinta coisa no terceiro versículo: Ele é o Originador Criacional, e isso no mais pleno sentido. Agora chegamos às coisas que foram feitas; isto é, que vieram a existir. Nos versículos 1 e 2, uma palavra diferente é usada. O Verbo não veio a existir: Ele era, porque o Seu ser era eterno. Mas Ele originou tudo o que veio a existir, pois criou “todas as coisas”. Para não deixar a menor lacuna para um erro, isso é enfatizado na segunda parte do versículo. A linguagem é notável em vista da moderna “falsamente chamada ciência”, tão amplamente popularizada, que se empenha em explicar tudo “sem Ele”. Mentes incrédulas agarram-se à teoria da evolução, apesar de uma escassez patética de fatos para apoiá-la, e as evidências alegadas, são da descrição mais frágil, porque enquanto glorifica o homem, ela elimina o ELE. Mas na verdade Ele não pode ser eliminado. De todas as incontáveis coisas que originalmente receberam existência, nenhuma delas a recebeu à parte d’Ele.
Pondere esse fato; pois aqui temos a explicação dos céus declarando a glória de Deus, e do fato de que Deus foi feito conhecido em certa medida na criação, como é indicado em Romanos 1:19-20. O Verbo criou todas as coisas e, portanto, na criação existe uma verdadeira expressão, tão longe quanto possa chegar, do próprio Deus e de Sua mente. Damos expressão aos nossos pensamentos por meio de verbos; e a importância deste grande nome, VERBO, é que aqu’Ele que O carrega é a expressão de tudo o que Deus é; e, como os versículos 1 e 2 mostram, Ele mesmo, na Sua essência, É tudo aquilo que Ele expressa. A criação, da forma como brotou por meio do Verbo, não era algo sem sentido, desordenadamente misturado, mas uma declaração do poder e sabedoria de Deus.
 Alcançamos, então, um sexto grande fato no quarto versículo. O Verbo tem vitalidade essencial. N’Ele, a vida não é derivada, mas original e essencial. Juntando isto com tudo o que foi afirmado antes, percebemos quão plenamente a inerente Deidade do Verbo é declarada e guardada. As palavras usadas são da maior brevidade e simplicidade – a maioria das palavras utilizadas nos primeiros quatro versículos é um monossílabo – mesmo assim estão carregadas com uma plenitude divina de significado, e como a espada do querubim em Gênesis 3:24, elas direcionam todos os detalhes para manter inviolada em nossa mente a verdade concernente aqu’Ele que é a Árvore da Vida para o homem. Este evangelho nos mostrará agora quão verdadeiramente a vida do crente é derivada d’Ele, mas o ponto no versículo 4 não é isso, mas que “a vida era a luz dos homens”. Este é o ponto que é retomado mais plenamente nos primeiros versículos da primeira epístola de João. A vida se manifestou e, consequentemente, o Deus que é luz veio para a luz e, sob essa luz, o crente caminha.
A luz na qual os homens devem andar não é meramente a da criação – por mais maravilhoso que seja – mas naquilo que foi exposto nas ações e palavras do Verbo. Quando o Verbo foi manifestado, a luz brilhou, mas a cena, em que a manifestação foi feita, foi de trevas. Em Gênesis 1, lemos como, pela palavra divina, a luz da criação irrompeu nas trevas; e oh! As trevas desapareceram. Aqui, temos a luz de uma ordem muito superior e aparece em meio às trevas morais e espirituais, que só poderiam ser dissipadas por uma verdadeira apreensão da luz. Mas ai! Essa apreensão estava faltando. No entanto, embora as trevas permanecessem, não havia outra luz para os homens além de “a vida”. Não há contradição nessas afirmações, pois, como tantas vezes, João está falando aqui das coisas de acordo com sua natureza abstrata, e ainda não chegou à narração histórica dos eventos.
Mas como aconteceu que a vida no Verbo realmente brilhasse nas trevas e se tornasse luz para os homens? A resposta a essa pergunta está no versículo 14. Antes de chegarmos a esse versículo, temos o importante parágrafo, versículos 6-13, onde começamos a ver as coisas de um ponto de vista histórico, e João Batista é introduzido para trazer à tona a suprema importância da “verdadeira Luz”. Esse João foi apenas um homem que apareceu como enviado por Deus; Sua missão é dar testemunho da Luz. É verdade que ele é chamado de “a candeia ... que alumiava” em João 5:35, mas a palavra usada ali é “lâmpada” (ARA) em vez de “luz”. João brilhou como uma lâmpada e prestou testemunho, mas a verdadeira Luz é Ele que “vindo ao mundo ilumina todo homem” (JND). Não é que todo homem seja iluminado, ou o versículo 5 seria contraditório, mas que Ele não era uma luz parcial, mas sim como o Sol que lança seus raios universalmente. Nenhuma nação poderia ter o monopólio da verdadeira Luz; assim, imediatamente, este evangelho leva nossos pensamentos para além das fronteiras estreitas de Israel.
No restante deste parágrafo (vs. 10-13), temos mais declarações de natureza histórica que ampliam e esclarecem o que nos foi dito nos versículos 4 e 5. Já aprendemos que o Verbo é uma Pessoa na Divindade, que Sua vida brilhou como luz para os homens, embora no meio das trevas; agora descobrimos que o mundo era o lugar daquelas trevas, nas quais Ele entrou e que, embora tivesse feito o mundo, ele se tornara tão alienado que não O conhecia. Neste versículo novamente não é Israel ou o judeu, mas o mundo. A luz, que foi derramada por meio dos profetas, pode ter sido confinada a Israel, mas não o brilho da verdadeira Luz.
O apóstolo João frequentemente menciona o mundo em seus escritos, e ele sempre usa uma palavra “cosmos”, ou seja, o universo como um todo ordenado, ou às vezes, em um sentido mais restrito, apenas o nosso mundo como um todo ordenado. Esse é o sentido do mundo neste versículo. Como Criador, Ele fez o universo como um todo ordenado, e um momento maravilhoso chegou quando Ele foi encontrado naquele cosmos de uma maneira especial. Ele estava lá entrando nesse cosmos mais restrito e menor, o que, infelizmente, se tornou pervertido e alienado pelo pecado – tão pervertido que nem mesmo a Ele conheceu.
Então, estreitando ainda mais o ponto, Ele chegou realmente a um canto mais obscuro daquele cosmos, onde foram encontradas Suas próprias coisas, como havia sido indicado pela profecia; mas Seu próprio povo – Israel – com quem aquelas coisas estavam conectadas, não O recebeu. Ele foi rejeitado, pois as trevas não puderam apreendê-Lo. Mas, embora fosse assim, havia exceções, como este evangelho continuará a nos mostrar. Alguns O receberam, crendo em Seu Nome. Eles não eram das trevas. Seus olhos estavam abertos e eles O apreenderam, vendo e crendo na glória de Seu Nome. Como consequência, receberam d’Ele autoridade para se tornarem filhos de Deus, e não judeus melhores e mais iluminados. A palavra “filhos (uihos)[2] aqui significa especificamente “nascidos de Deus”; esta é outra palavra que João usa habitualmente, em vez da palavra “filhos (teknon), que é mais usada por Paulo. Há uma pequena diferença entre as duas. Está em vista o mesmo bendito relacionamento com Deus, mas, como “filhos (teknon), nossa maturidade e posição nessa relação estão mais em destaque; como “nascidos de Deus (uihos)”, a ênfase é colocada no fato de que nascemos verdadeira e vitalmente de Deus.
Essa é a ênfase aqui, como mostra o versículo 13. O judeu se vangloriava de ter o sangue de Abraão em suas veias, assim como hoje um homem pode gabar-se de ter nascido de sangue aristocrático ou mesmo real. Aquelas almas humildes, que, como exceções à regra, receberam a Cristo quando Ele veio, nasceram de Deus. A vontade da carne nunca teria produzido isso, pois a carne é totalmente oposta a Deus. A vontade do homem, nem mesmo dos melhores homens, poderia ter produzido isso: está totalmente além dos poderes do homem. O nascimento deles foi de Deus, como um ato divino; e aqu’Ele que eles receberam em fé deu-lhes o direito formal de tomar o lugar que essencialmente lhes pertencia.
Como foi que as almas piedosas, de quem temos um vislumbre em Lucas 1 e 2, receberam o Cristo no instante em que Ele apareceu? Não porque tivessem o sangue de Abraão: não porque a carne neles era de um tipo tão superior que os impelia a fazê-lo: não porque fossem influenciados pela poderosa vontade de algum homem bom. Simplesmente porque eles nasceram de Deus. Foi um ato divino. Quando chegarmos a João 10, encontraremos o mesmo fato básico declarado de outra maneira. Quando o Pastor chegou ao rebanho, encontrou alguns que eram “suas próprias ovelhas”, que ouviram Sua voz e foram conduzidas por Ele. Havia muitos que eram Suas ovelhas num aspecto nacional, mas que não eram Suas próprias ovelhas no sentido em que Maria Madalena e os discípulos e a família de Betânia e Simeão e Ana estavam. Essas pessoas nascidas de Deus foram as que O receberam.
Agora, no versículo 14, retornamos ao tema do versículo 5, e encontramos um sétimo grande fato quanto ao Verbo. Ele Se fez carne e habitou entre nós. Os versículos 1 e 2 nos dizem o que Ele era essencialmente e eternamente. O versículo 14 nos diz em que Ele Se tornou. Ele Se tornou carne; isto é, Ele assumiu a Humanidade perfeita; e assim todos os outros seis grandes fatos nos são revelados e se tornam disponíveis para nós. Somente quando Ele Se colocou em relação com a criatura dessa maneira, é que este Ser absoluto e com existência própria pôde ser corretamente conhecido pelos homens.
O fato de que o Verbo Se fez carne garante não apenas que Ele possuía um corpo humano real (que foi negado por alguns dos primeiros hereges), mas também que passou por anjos e “tomou a semente de Abraão” (Hb 2:16), Ele havia Se tornado, em todo o sentido, um homem. É significativo que é neste evangelho, que começa com uma afirmação tão completa de Sua divindade, que Ele fala de Si mesmo como um “Homem” (8:40). Por fim, tudo o que Deus é, foi revelado a homens em um Homem. Ele habitou entre nós “cheio de graça e verdade”. A base de toda verdade está no conhecimento de Deus. Se esse conhecimento chegasse a nós apartado da graça, teria nos destruído; mas aqui estava Um cheio de graça e verdade, e habitando entre nós.
No versículo 14, há um parêntese colocado entre colchetes em nossas bíblias[3], mas o versículo 15 também é um parêntese, embora não colocado entre colchetes. O primeiro nos diz que os apóstolos, e tantos outros “quantos O receberam” (v. 12), viram Sua glória, e foi como de um unigênito com um pai” (JND), e não como a glória do Sinai. Essa era a glória atribuída à Majestade e à justa exigência; esta era a glória conectada com um relacionamento íntimo e afetuoso.
O segundo parêntese traz brevemente o testemunho de João, que é referido mais detalhadamente em alguns versículos depois, para mostrar que ele discerniu a pré-existência e, portanto, a glória divina daqu’Ele de Quem ele deu testemunho. Historicamente Ele veio depois dele, tanto em Seu nascimento como em Sua entrada no ministério, mas Ele existiu antes dele, e assim tomou o primeiro e supremo lugar.
Eliminando em nossa mente os dois parênteses, teremos, “o Verbo Se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e verdade; e todos nós recebemos também da Sua plenitude”. Novamente aqui é afirmado o resultado para “nós” que cremos. Somente “todos quantos O receberam” podem verdadeiramente dizer “nós recebemos” da Sua plenitude; mas estes tais podem dizê-lo, e todos esses “quantos” podem em sua totalidade, graças a Deus! A plenitude da graça e a plenitude da verdade são a porção de cada um, até mesmo do mais fraco, embora eles nunca conseguirão explorar toda a plenitude dela. Graça é especialmente enfatizada. Precisamos dela, empilhadas às alturas das montanhas – “graça sobre graça”. Por meio de Moisés a lei foi dada, formulando as exigências de Deus, mas não estabelecendo nada. A graça e a verdade surgiram aqui e foram estabelecidas pelo advento de Jesus Cristo.
Finalmente, João claramente identificou a Pessoa, conhecida entre os homens que é o Verbo. O Verbo Se fez carne, habitando entre nós, cheio de graça e verdade. E a maravilha é que essa plenitude está em Jesus Cristo. Este magnífico prefácio ao evangelho levou-nos diretamente a JESUS.
Tendo chegado lá, nos é dado um outro vislumbre de Sua glória. Ele é o Revelador do Deus que nenhum homem jamais viu. Como o Filho Unigênito que está no seio do Pai, Ele poderia declará-Lo plenamente como o Pai. Na palavra “seio”, temos uma figura humana, mas não devemos usá-la de maneira humana. A figura é usada em outro lugar nas Escrituras como indicando união mais próxima e intimidade mais completa. O Filho é tão uno com o Pai e na intimidade de Sua mente, que Ele pode declará-Lo em perfeição. Nosso versículo não diz que Ele estava, como se fosse um lugar que Ele poderia ter deixado, mas que ELE ESTÁ. É um estar eterno, Ele sempre esteve, está e estará no seio do Pai. Assim, o Verbo fazendo-Se carne significava a vinda da graça e da verdade e a declaração completa de Deus como Pai.
Os versículos 19–28 nos dão o testemunho de João, prestado enquanto ele estava batizando no Jordão; um lado totalmente diferente do que é registrado em outros evangelhos. Houve primeiro o lado negativo, uma vez que os líderes religiosos estavam curiosos sobre ele e queriam saber se ele era o Cristo, ou Elias, ou o profeta de quem Moisés havia falado. Seu testemunho foi firme; ele não era nenhum desses, mas apenas a voz que clamava no deserto, de quem Isaías havia falado. Então, quando questionaram seu batismo, veio seu testemunho positivo. Já havia Alguém entre eles que eles não conheciam, muito maior do que ele mesmo, a Quem ele não era digno de desatar as correias das Suas sandálias. Pelo uso dessa figura, João expressou sua percepção da glória suprema daqu’Ele que estava prestes a Se manifestar.
Este foi o começo do testemunho de João o qual aumentou em exatidão e intensidade como os versículos seguintes mostram.
Algumas das poderosas implicações da encarnação vêm diante de nós na última parte do capítulo. Encontramos no primeiro capítulo de João não apenas muitos de Seus Nomes e Títulos, mas também um desdobramento dos variados ofícios e funções com que Ele Se ocupa.
Os grandes da Terra preenchem vários papeis. A rainha, por exemplo, aparece em uma ocasião como Comandante Chefe, em outra como uma Benfeitora, e assim por diante. Como Chefe de Estado, ela cumpre essas funções e outras além dessas. Não é de surpreender, portanto, que o Verbo, fazendo-Se carne, deva assumir cargos e cumprir funções de imenso alcance e significado eterno. Ao lermos o versículo 29 e observarmos o testemunho de João, nos encontramos com o primeiro da série. Ele é “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo (kosmos).
João disse de fato: “Eis o único SACRIFÍCIO efetivo, que nunca seria repetido, de valor eterno”. No Velho Testamento, o cordeiro tinha sido especialmente marcado como o animal dedicado ao uso sacrificial: daí o título aqui. Jesus é o Cordeiro da provisão de Deus, e se Ele tira por sacrifício o pecado do mundo – não apenas o seu pecado ou o meu, ou o pecado de Israel, mas o pecado de todo o “cosmos” – então tem sido efetuada uma obra de tal magnitude cujo estabelecimento permanece para a eternidade. A coisa deve ser EXECUTADA, e aqui está o EXECUTOR dela. Geralmente pensamos no pecado em suas manifestações e inumeráveis detalhes, mas aqui ele é considerado como um problema gigantesco e terrível, encontrando sua completa solução e remoção. Deus terá um cosmos – o universo como um todo ordenado – totalmente e eternamente purificado do pecado; e aqui está aqu’Ele que por Seu sacrifício realiza isso. Ele é o Sacrifício de todos os tempos e nisso vemos a base de tudo o que se segue. Se Ele não fosse isso, não haveria nada a ser feito no caminho da bênção e da glória.
João procedeu a identificar Jesus como aqu’Ele de Quem ele havia falado anteriormente e a declarar que o objeto de seu batismo não era meramente a manifestação do remanescente divino em Israel, mas a manifestação do Cordeiro de Deus a Israel. João viu o Espírito descer sobre Ele como uma pomba descendo e permanecendo – não descendo e retornando, como a pomba que Noé enviou. Foi dito a João, quando foi comissionado, que esse era o sinal que identificava aqu’Ele a Quem ele deveria agir como precursor, e assim aconteceu; aqu’Ele que iria batizar não apenas com água, mas com o Espírito Santo.
Ao dizer isso, João evidentemente apresentou Jesus como o grande ABENÇOADOR. Como o Sacrifício, Ele tira o pecado do mundo: como o Abençoador Ele preenche o mundo com a luz e a energia do Espírito de Deus. É claro, portanto, que aqui temos duas partes de um todo, e ambas as declarações estão em linhas amplas e abrangentes. Cada crente hoje tem seus pecados removidos e recebe o Espírito Santo e é um pequeno item dentro de um todo. Mas o ponto aqui é o todo, considerado abstratamente. Ainda não vemos o pecado totalmente removido e o Espírito derramado sobre toda a carne; mas aqui estava aqu’Ele que fará esses fatos acontecerem.
A conclusão de João, declarada no versículo 34, é de muita importância. Ela certificava a João o testemunho que ele deu nos versículos 15 e 27. Aqui estava o Filho de Deus, e da Sua Filiação ele pôde dar testemunho. O Espírito Santo é uma Pessoa na Divindade, e aqui está um Homem que tem essa Pessoa Divina à Sua disposição, para derramá-Lo como um batismo. Quem pode ser este Homem? Ninguém menos do que o Filho de Deus – outra Pessoa na Divindade. Assim somos imediatamente conduzidos ao ponto que é o objetivo principal deste evangelho (cap. 20:31). O Filho estava aqui em Humanidade; então tal coisa poderia acontecer. O Filho de Deus e o Verbo são um.
No dia seguinte, João deu um testemunho semelhante, concentrando-se apenas na Própria Pessoa, e não em Sua obra. Ainda assim, foi a Pessoa em Seu caráter como o Cordeiro sacrificial, e é quando Ele Se reveste deste caráter que Ele Se torna especialmente atraente, como Apocalipse 5 mostra. Essa atratividade foi sentida aqui, pois dois dos discípulos de João O ouviram falar assim e imediatamente deixaram João para se apegarem a Jesus. Nenhum serviço mais verdadeiro pode ser atribuído a Deus do que aquele que desvia os ouvintes do servo humano e os une a Cristo. João Batista era um servo muito verdadeiro.
Jesus não impediu os dois discípulos em seu desejo de estar com Ele; antes, os encorajou a permanecer com Ele. Ele não é apenas o Sacrifício e o Abençoador, mas também o CENTRO a Quem todos devem ser reunidos. Os dois discípulos haviam descoberto isso por uma espécie de instinto, e a ação deles é suficiente para colocá-Lo diante de nós nessa função. Nesse momento, temos o Senhor dizendo: “Eu, quando for levantado da Terra, todos atrairei a Mim” (cap. 12:32) e nos dias vindouros isso será visivelmente cumprido. Mas entre todas as miríades, André e o outro discípulo terão a distinção de terem sido os primeiros a descobrir o Centro divinamente apontado em Jesus.
O versículo 41 nos mostra que o que havia acontecido tinha revelado à alma de André que Jesus era o Cristo. Novamente devemos pensar sobre esse versículo no capítulo 20 – Ele era o Batizador com o Espírito Santo, portanto, o Filho de Deus; Ele era o Centro, nomeado por Deus, portanto, o Cristo. A primeira ação de André foi procurar seu próprio irmão Simão e testificar a ele da sua descoberta, e assim “o levou a Jesus”. Muitas vezes tem sido assim desde então, que o homem mais impetuoso e notável tem sido conduzido ao Salvador por alguém de um tipo mais comum. Até onde temos algum registro, essa foi a coisa mais impressionante que André fez.
Simão estava sempre pronto para falar, e entre os discípulos era geralmente o primeiro a falar, mas quando trazido para Jesus ele não teve a primeira palavra. Jesus imediatamente mostrou que Ele sabia seu nome e ascendência, e então lhe deu um novo nome. Como vemos com Daniel e seus três amigos, grandes reis afirmaram sua propriedade sobre servos e escravos mudando seus nomes; da mesma maneira, quando Simão veio a Jesus, Ele afirmou Sua reivindicação sobre ele. Mas dando-lhe um nome que significava “uma pedra”, Ele fez mais do que isso: anexou Simão à edificação que Ele tinha em vista e, no momento, Simão não sabia de nada. Ele, de fato, no que diz respeito ao relato, nada tinha a dizer. O que o Senhor tinha em vista e o que Ele disse foi o que houve naquele momento.
Temos apenas de nos voltar para 1 Pedro 2, para descobrir que agora Simão sabia e tinha algo a nos dizer sobre isso. Vindo a Cristo, a Pedra Viva, ele se tornou pedra viva em vista da construção de Deus, que está ocorrendo durante a presente época; e, como ele nos mostra naquele capítulo, o que era verdadeiro para ele também é verdadeiro para nós, à medida que chegamos à Pedra Viva, cada um de nós por sua vez. Claramente, então, Jesus Se revelou como o CONSTRUTOR da casa de Deus pela maneira como conheceu Simão, embora o próprio Simão e os demais não soubessem disso na época. Essa é outra função que Jesus cumpre.
O próprio Jesus tomou a iniciativa ao encontrar Filipe, como mostra o versículo 43, apresentando-Se com a palavra: “Siga-Me”. A palavra evidentemente era suficiente. Ela O apresentou a Filipe como o LÍDER, que corretamente comanda a obediência leal de cada um e de todos. Filipe O seguiu e se tornou um que buscava outros, embora ainda não soubesse muito. Para Natanael Ele só poderia falar de “Jesus de Nazaré, filho de José”; nem era uma designação muito elevada nem muito correta daqu’Ele que ele havia acabado de começar a seguir. Isso teve o efeito de prejudicar um pouco Natanael: ainda assim, era suficiente levá-lo a um encontro com o Senhor.
Mais uma vez, Jesus tomou a iniciativa e por Sua exclamação inicial a Natanael Se revelou como o Ponderador do coração dos homens. Aqui estava um israelita, não sem pecado, mas sem dolo; isto é, sem engano ou desonestidade. Ali estava um homem que era correto e honesto em seu espírito diante de Deus; e Jesus sabia disso, como mostrou com a Sua resposta à pergunta admirada de Natanael: “Donde me conheces Tu?” O Senhor estava Se mostrando ser o JUIZ DE TODOS, diante de Quem todos os homens estavam nus e revelados, e Quem pode colocar cada homem em seu devido lugar. Natanael veio ver Jesus de Nazaré e descobriu aqu’Ele que sabia tudo sobre ele e o leu completamente, como se fosse um livro aberto. Quem poderia ser esse Jesus?
A resposta de Natanael é dada no versículo 49, e somos levados novamente a esse versículo em João 20:31. Ele é “o Filho de Deus”, e Ele também é “o Rei de Israel”. Como um fervoroso e piedoso israelita, ele estava esperando pelo Rei e estaria inclinado a estabelecer todas as possíveis ênfases ali. Mas, evidentemente, na presença deste Juiz dos homens e Ponderador dos corações, toda a ênfase estava no fato de que Ele deve ser o Filho de Deus; e se assim for, então é o Rei de Israel. Observe então como no versículo 50 Jesus aceitou a adoração de Natanael não como sendo fora do lugar, mas como fruto da fé. Ouvindo as palavras de Jesus, ele creu, e sua adoração era o fruto disso.
No versículo 50, parece haver um contraste entre ouvir e ver. Ouvir induz fé, mas um dia está chegando quando veremos coisas maiores do que ouvimos. Quando o dia chegar à vista, veremos o Filho do Homem como o grande ADMINISTRADOR do universo de luz e bênção de Deus. Os anjos terão seu lugar de serviço, mas todos os seus movimentos serão regulados e executados em referência a Ele. Esta função Ele cumprirá como Filho do Homem de acordo com o que é predito no Salmo 8. Esse Salmo fala d’Ele como “um pouco menor ... do que os anjos”, mas isto foi por causa do sofrimento da morte, como Hebreus 2:9 nos informa. Também fala de ter domínio sobre as obras de Jeová na Terra e no mar. Nosso versículo em João 1 mostra que os anjos estarão sujeitos a Ele, mas Hebreus 2 o leva ainda mais longe, dizendo que “todas as coisas” (Hb 2:8) estando em sujeição significa que “nada deixou que não Lhe esteja sujeito”. O Filho do Homem dominará os céus e a Terra.
Antes de passarmos do primeiro capítulo, notemos que não só temos esses vislumbres das várias funções cumpridas pela Palavra que Se tornou carne, mas também temos trazidos à luz todos os Seus principais títulos: Jesus, o Messias; o Cristo; o Filho Unigênito; o Cordeiro de Deus; o Filho de Deus; Jesus de Nazaré; o Rei de Israel; o Filho do Homem. Todo o capítulo é como uma mina ricamente atravessada por esses veios de ouro.


[1] Cidadela é o nome que se dá a qualquer tipo de fortaleza ou fortificação construída em ponto estratégico de uma cidade, em que alguém pode se abrigar e se proteger de ataques inimigos.
[2] N. do T.: É de vital importância perceber a grande diferença entre os termos “nascido de Deus” (“uihos” em grego) e “filho de Deus” (“teknon”), como revelados no Novo Testamento, pois nos capacita a desfrutar de que não apenas somos nascidos na família de Deus pelo Seu ato soberano ao nos conceder vida divina – a qual todos em Sua família têm – mas quão distinguidos Deus nos quis tornar em Sua família ao nos trazer à posição de “filhos de Deus”, na própria aceitação que Cristo mesmo tem diante de Deus. Nessa posição temos relacionamento, entendimento e comunhão que nenhum outro “nascido de Deus” desfruta. A expressão “Abba Pai” foi apenas revelada no Novo Testamento e somente pronunciada pelos “filhos de Deus”, pois receberam o “espírito de adoção” (Rm 8:15; Gl 4:6).
[3] N. do T.: Nas versões inglesas a frase “e vimos a sua glória, como a glória de um unigênito com um pai” (JND) está entre parênteses.

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