sábado, 14 de setembro de 2019

JOÃO 19


JOÃO 19


No primeiro versículo deste capítulo, a palavra “pois” deve ser notada. Pilatos já havia pronunciado o veredicto “Não acho n’Ele crime algum” quanto a Jesus, mas porque os judeus clamavam por Barrabás e O rejeitavam, ele O levou e O açoitou. Todas as tentativas de exibição da justiça humana comum foram jogadas ao vento, todas as decências públicas foram ultrajadas. Tomando a sentença do juiz como liberação para a sua ação, os soldados prosseguiram com o caso com suas maneiras brutais. No entanto, a mão de Deus estava tão acima de Pilatos que uma segunda e ainda uma terceira vez ele foi obrigado a pronunciar sobre o Senhor o veredicto “Não acho n’Ele crime algum”. Esta foi uma proclamação muito mais extensa do que se ele tivesse simplesmente declarado que Ele não era culpado das específicas ofensas alegadas contra Ele. Ele tentou jogar o ônus da sentença de morte sobre os judeus. No entanto eles o rejeitaram declarando que Sua reivindicação de ser o Filho de Deus exigia a morte de acordo com a lei deles.
Eles disseram que Ele deveria morrer porque disse que era o Filho de Deus, enquanto exigiam que Pilatos O condenasse porque Ele disse que era o Rei de Israel. No início do evangelho, ouvimos Natanael O reconhecendo destas duas maneiras, como nós, graças a Deus, O reconhecemos hoje. Mas por essas duas acusações Ele foi condenado.
A observação do evangelista no versículo 8 lança grande quantidade de luz sobre a situação no que diz respeito a Pilatos. A história secular nos informa que ele severamente contrariou os judeus nos primeiros anos de seu governo e, portanto, temia irritá-los ainda mais. No entanto, ele estava convencido da inocência do Prisioneiro, cuja postura serena o deixava ainda mais desconfortável. A acusação referente ao “Filho de Deus” gerou temores que provavelmente eram supersticiosos, mesmo assim poderosos, e que suscitaram a pergunta: “Donde és Tu?”
Se essa pergunta tivesse surgido de um verdadeiro exercício espiritual, o Senhor, sem dúvida, a teria respondido, como fez com os dois discípulos quando Lhe perguntaram: “Onde moras?”, no primeiro capítulo deste evangelho. Como a pergunta foi motivada pela superstição e medo, o Senhor não lhe deu resposta. Isso levou Pilatos à ameaçadora afirmação do poder sobre a vida e a morte que ele possuía sob César. A resposta do Senhor, evidentemente, aumentou os temores de Pilatos – pois o Prisioneiro assumiu calmamente a posição judicial e, com um ar decisivo, direcionou Pilatos para um Poder superior ao de César como a verdadeira Fonte de qualquer autoridade transitória que ele possuísse, e também julgou o grau de culpa ligado a ele mesmo e aos líderes judeus, respectivamente. A desesperada intenção estava com os judeus e Pilatos era apenas a ferramenta deles. Ainda assim, embora menos culpado do que eles, ele era definitivamente um homem culpado. Foi uma situação perturbadora para Pilatos, que se viu sem saber o que fazer na presença do Verbo que Se fez carne. Qual foi então a resposta à pergunta pendente de Pilatos? Que Jesus certamente era mesmo “de cima”, vindo da Fonte da autoridade de Pilatos.
Esse episódio aumentou muito o desejo de Pilatos de libertar Jesus, mas os judeus habilidosos sabiam como exercer uma pressão decisiva. Em vista da tensão anteriormente existente entre ele e os judeus, ele só podia considerar o clamor deles, registrado no versículo 12, como uma ameaça direta de perder seu cargo diante de César se ele soltasse Jesus. Os próprios líderes judeus “amavam mais a glória dos homens do que a glória de Deus” (Jo 12:43); Pilatos tinha muito mais consideração pelo louvor de César do que pelo julgamento de acordo com a verdade e a justiça.
Ele fez, no entanto, mais um apelo. Em João 18:31, vimos ele fazendo uma sugestão calculada para apelar ao orgulho nacional deles; novamente no versículo 39, ele fez uma pergunta, apelando ao costume deles. Agora, em nosso capítulo, versículos 13 e 14, ele faz um apelo ao sentimento deles. Tudo, no entanto, foi em vão no que diz respeito ao seu desejo de despojar-se da responsabilidade de pronunciar julgamento contra o Senhor. Tudo foi ordenado para que a culpa dos judeus e, mais especialmente, dos principais dos sacerdotes, fosse proclamada de uma maneira cabal pelos próprios lábios deles. Eles coroam seu clamor: “Este não, mas Barrabás”, com a afirmação: “Não temos rei, senão o César”.
A predição de Oseias foi: “Os filhos de Israel ficarão muitos dias sem rei e um príncipe” (Os 3:4). As duas tribos tinham os reis da linhagem designada por Deus e as dez tribos tinham príncipes de sua própria escolha. Oseias declarou que em breve eles não deveriam ter nenhum dos dois. Mas, como se isso não bastasse para esses homens maus, eles agora deliberadamente aceitavam o despotismo[1] dos gentios. Eles apelaram para César e, sob o calcanhar de ferro[2] de uma sucessão de déspotas, Deus achou por bem deixá-los. Por dezenove séculos, os dois nomes, Barrabás e César, podem servir para resumir a história de miséria dos judeus. O espírito de ausência de lei e de insurreição da humanidade havia sido encabeçado em Barrabás: a ordem que é imposta pela poderosa autocracia[3] foi expressa em César. Por dezenove séculos os judeus sofreram; Em um primeiro momento sob a crueldade organizada das autoridades e, depois, sob as turbas desorganizadas, sendo moídos, por assim dizer, entre a pedra de moinho superior e a inferior. Eles ainda precisam sofrer sob as últimas formas de César e Barrabás, o que se provará ser numa forma pior do que a primeira.
Quando Pilatos trouxe Jesus para fazer seu último apelo, ele se assentou no tribunal no lugar chamado Litóstrotos, o que indicava que ele estava prestes a pronunciar a sentença do caso. João faz uma pausa aqui para nos indicar sobre o horário, que está registrado no versículo 14. O fato de que há uma aparente discrepância entre o horário dado aqui e aquele dado tão claramente em Marcos 15:25, tem ocasionado muita discussão e controvérsia. Não podemos deixar de perguntar: Se Ele foi crucificado na hora terceira, como podia ser dito que Pilatos deu a sua sentença na hora sexta? A solução parece ser que o nosso evangelista, lidando com o que aconteceu diante do juiz romano, usa o cálculo de tempo romano, que era similar ao nosso, enquanto Marcos o calcula de acordo com o costume judaico. Já que isso é assim, tudo é simples. Era cerca de seis horas da manhã quando o julgamento de Pilatos chegou ao fim e cerca de nove horas da manhã, quando Jesus foi crucificado. A “preparação da Páscoa” durava 24 horas, começando às 6 horas da noite anterior. Nessas 24 horas estavam compreendidos os eventos mais tremendos do tempo, ou na verdade, da eternidade.
Em nosso evangelho nada é dito quanto ao escárnio adicional dos soldados romanos, quando Ele foi entregue a eles, pois estas eram nada mais do que as ações grosseiras dos pagãos que vinham à tona. O que nos é dito no versículo 16 é que Pilatos O entregou “a eles”, isto é, aos principais dos sacerdotes e os servos, dos quais o versículo 6 tinha falado. Eles eram seus perseguidores e acusadores. A animosidade estava com eles. Eles eram os que odiavam tanto a Ele como a Seu Pai. Pilatos O entregou nas mãos deles para que pudessem perpetuar o seu maior pecado, entregando-O para ser executado pelos gentios.
Como os outros evangelhos mostram, o Senhor usou expressões tais como “tome a sua cruz” (Mt 16:24 – TB) e “carrega a sua cruz” (Lc 14:27 – TB), como figurativo do fato de que Seu discípulo deve estar preparado para ser condenado à morte pelo mundo. A força completa dessa figura é vista aqui, pois “levando Ele às costas a Sua cruz, saiu para o lugar chamado Caveira”. O lugar recebeu o nome por causa da configuração peculiar da rocha, mas é significativo por tudo isso! Uma caveira fala do fim humilhante de todo o poder e glória do homem. Alguns homens podem ter tido um cérebro brilhante e poderoso como nunca existiu; mas ele se transformou em uma caveira! O Filho de Deus aceitou o julgamento de morte como vindo das mãos do homem, e Ele a carregou para um lugar que estabelecia simbolicamente o fim de toda glória do homem.
Além disso, Ele aceitou a morte das mãos dos homens em sua forma mais vergonhosa. A crucificação foi peculiarmente uma morte de repúdio e vergonha. Como uma invenção romana, expressava o arrogante desprezo com o qual levavam à morte os bárbaros conquistados, pregando-os como se fossem vermes. Para esse tipo de morte Jesus foi entregue pelos líderes dos judeus. João nos dá a mais breve e simples declaração desse tremendo fato. O Senhor da glória foi crucificado. Esse fato não precisa de embelezamento de nenhum tipo.
Mas quando isso aconteceu, Pilatos interveio, escrevendo um título e o colocando na cruz. Parece que nenhum dos evangelistas cita cada palavra do título, embora João esteja mais próximo em fazê-lo. Na íntegra parece ter sido: “Este é Jesus Nazareno, o Rei dos Judeus”. No que diz respeito aos judeus, esse ato de Pilatos foi definitivamente provocativo e tinha essa intenção. Eles o pressionaram na condenação de Jesus e ele retaliou com uma declaração pública de que o odiado Jesus Nazareno era o Rei dos judeus. Esta era a última coisa que eles queriam admitir, daí o protesto deles. Mas aqui Pilatos foi inflexível. Ele se recusou a alterar um jota[4] ou til[5], e sua curta resposta, “O que escrevi, escrevi”, tornou-se quase proverbial.
Em tudo isso podemos ver a mão de Deus. O Verbo havia Se tornado carne e habitou entre nós. Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho unigênito. Ele era conhecido entre os homens como Jesus Nazareno – um título de menosprezo. Quando Ele entrou em Jerusalém, uma semana antes, houve algum testemunho de Sua glória, e se não houvesse, as próprias pedras teriam imediatamente clamado – assim nos diz Lucas. Mas aqui, de fato, não havia testemunho humano, e assim um pedaço de tábua, inscrito pela mão de Pilatos, ou por sua ordem, clamava que o desprezado Jesus Nazareno era de fato o Rei dos judeus. É notável como nosso próprio Senhor adotou o título de vergonha, e o teceu como uma coroa para Sua fronte quando ressuscitado e glorificado. É um fato surpreendente que JESUS NAZARENO ESTÁ NO CÉU – veja Atos 22:8.
O título foi escrito nos três idiomas predominantes daquela época. Hebraico, a língua na qual a Lei de Moisés surgiu, a linguagem da religião. Grego, a língua da cultura gentia. Latim, a linguagem do imperialismo gentio. Desta maneira representativa, o mundo inteiro estava envolvido em Sua morte.
No versículo 23, os soldados romanos aparecem como instrumentos de Sua morte, e também como cumprindo profecias que estiveram na Escritura por cerca de mil anos e das quais nada sabiam. No Salmo 22, Davi previu a divisão de Suas vestes entre eles e a sorte sendo lançada sobre Sua túnica. Essas duas coisas fizeram os quatro soldados e João registrou as circunstâncias que levaram a um tão exato cumprimento. Sua túnica era sem costura, toda tecida de alto a baixo. Coisas que para nós podem parecer triviais levam ao cumprimento da Palavra de Deus.
Não podemos deixar de pensar, no entanto, que essa característica é mencionada porque tem um valor simbólico. Tudo em nosso Senhor, tanto em relação à Sua Pessoa como à Sua obra, era de uma só peça, toda tecida sem costura. Com o homem em sua condição caída, é diferente. O símbolo apropriado para o homem e sua obra é o avental de folhas de figueira ao qual Adão e sua esposa tinham recorrido depois de terem pecado. Eles costuraram folhas de figueira juntos, e qualquer um que conheça a forma da folha de figueira perceberá quantas costuras deve ter tido. Tudo era uma colcha de retalhos de um tipo elaborado. Deles era o avental de retalhos: D’Ele era a túnica sem costura.
Naquela túnica, Jesus apareceu diante dos homens, o símbolo de Sua perfeição e não deveria ser rasgado. É notável que João apenas fale dessa túnica, dizendo que foi tecida “de alto a baixo”, pois, ao contrário dos outros evangelhos, ele omite qualquer menção ao véu no templo que “se rasgou em dois, de alto a baixo”. Tudo sobre o Senhor testificou do fato de que Ele veio de cima e estava acima de tudo. E o golpe que na hora de Sua morte colocou de lado a velha ordem das coisas também veio do alto.
Os versículos 25-27 são particularmente impressionantes como ocorrendo neste evangelho, escritos como se fossem declarar Sua glória divina para que pudéssemos acreditar que Ele é o Cristo, o Filho de Deus. Ao vê-Lo assim, poderíamos supor que tais coisas inferiores, como as relações humanas, seriam desconsideradas. Mas é exatamente o oposto. Por todo o evangelho, notamos como a realidade da Sua Humanidade é enfatizada. Toda perfeição humana alcançou sua plena manifestação n’Ele e, portanto, vemos a afeição relacionada com os vínculos familiares humanos totalmente manifestada, mesmo na hora de Sua mais profunda agonia. A hora chegou quando as palavras do idoso Simeão a Maria foram cumpridas – “uma espada traspassará também a tua própria alma”. A espada de Jeová, segundo Zacarias, estava para se levantar contra o verdadeiro Pastor de Israel, mas uma espada de outro tipo também traspassaria a alma de Sua mãe, e o Pastor pensava nisso.
Apenas nove palavras foram ditas – cinco para Maria e quatro para João; mas o significado delas era claro, e formaram um acorde de amor que encontrou uma resposta imediata. Jesus confiou Sua mãe ao discípulo que Ele amava e quem, no conhecimento de Seu amor, amava em retorno. O amor pode ser confiável, especialmente quando não é mero afeto humano, mas divino em sua fonte, como brotando da apreciação do amor de Jesus.
No versículo 28, recebemos outro daqueles lampejos de onisciência que caracterizam este evangelho. Alguns versículos antes vimos os soldados cumprindo as Escrituras, embora totalmente inconscientes de que estavam fazendo isso. Agora vemos o próprio Jesus naquela hora de trevas inspecionando todo o campo da profecia, e bem consciente de que, de todas as predições centradas em Sua morte, apenas uma permanecia para ser cumprida. No Salmo 69, Davi escreveu: “Na Minha sede Me deram a beber vinagre”. Uma coisa pequena em si mesma, mas cada palavra de Deus deve ser cumprida em sua época, e somos informados de que naquela hora de sofrimento Ele foi capaz de elevar-Se acima de Suas circunstâncias e não apenas discernir a única coisa que faltava, mas também proferir as palavras que imediatamente fizeram com que isso se cumprisse. Nenhum mero homem poderia ter feito uma ou outra coisa.
O mais notável é que, pouco antes de ser crucificado, os soldados Lhe deram vinagre misturado com fel e mirra, mas Ele não o aceitou, como registrado em Mateus e Marcos. Isto foi sem dúvida porque Ele não teria nada de qualquer dispositivo humano para diminuir o sofrimento físico envolvido, e também porque naquele momento não havia sede da Sua parte. As previsões divinas devem ser cumpridas com exatidão e precisão.
João não faz menção das três horas de trevas, nem do abandono com o amargo clamor que isso suscitou, previsto no primeiro versículo do Salmo 22. Essas coisas não ilustram particularmente a Deidade de Jesus, sobre a qual o Espírito de Deus o levou a colocar tal ênfase. O que ilustrou foi o triunfante clamor com grande voz com o qual Sua vida terrena se encerrou. O Salmo 22 termina com as palavras “Ele o fez”, o que equivale no Novo Testamento a: “Está consumado”. Ele havia chegado ao mundo com pleno conhecimento de tudo o que Lhe havia sido confiado pelo Pai: Ele agora estava deixando o mundo no pleno conhecimento de que tudo havia sido cumprido; não faltava nada. O profeta previu que Jeová deveria “fazer de Sua alma uma oferta pelo pecado” (JND), e isso foi realizado. Como consequência, a fé pode agora pegar a linguagem de Isaías 53:5, e torná-la sua, assim como o remanescente arrependido de Israel irá adotá-la em um dia vindouro.
Nisso também nosso Senhor era único. Tem havido servos de Deus que, como Paulo, puderam falar com confiança de terem concluído sua carreira, mas ninguém ousaria afirmar que haviam dado o toque final à obra em suas mãos; eles na verdade entregaram a obra àquele que deveria sucedê-los. A Sua obra foi exclusivamente Sua, Ele a levou à perfeita conclusão. Ele poderia avaliar sua própria obra e declará-la consumada. Todos os outros têm que humildemente submeter sua obra ao escrutínio e veredicto divino no dia vindouro.
Tanto Mateus e Marcos nos dizem que depois de clamar com uma voz alta, Jesus expirou. Parece que Lucas e João nos deram uma parte dessa última declaração. Se assim for, deve ter sido: “Está consumado; Pai, nas Tuas mãos entrego o Meu espírito”. A primeira parte serve para enfatizar Sua Deidade, de modo que João a registra: a segunda enfatiza Sua perfeita Humanidade, em Sua dependência de Deus, de modo que Lucas a registra. Fiel também ao caráter de seu evangelho, João narra o próprio ato de Sua morte de uma maneira especial – “Ele entregou o Seu espírito” (JND). O homem sábio do Velho Testamento nos disse: “Nenhum homem há que tenha domínio sobre o espírito, para reter o espírito; nem tem poder sobre o dia da morte” (Ec 8:8), mas aqui está aqu’Ele que tinha esse poder. Ele é capaz de um momento erguer Sua voz com força inabalável, e no momento seguinte entregar Seu espírito, e assim cumprir Suas próprias palavras registradas em João 10. Verdadeiramente, ali Ele falou em dar Sua “vida” ou “alma”, dizendo: “Ninguém ma tira de Mim, mas Eu de Mim mesmo a dou; tenho poder para a dar, e poder para tornar a tomá-la”. Mas as duas afirmações estão inteiramente de acordo, pois todos sabemos que quando o espírito humano deixa o corpo, a vida de um homem na Terra cessa. Quando Deus chama o espírito do homem, ele se vai. Aqui está Alguém que tem pleno comando sobre o Seu espírito; Ele o entregou ao Seu Pai e assim deu a Sua vida.
Encontramos no próximo capítulo que, depois de ter dado Sua vida, Ele a tomou novamente em ressurreição. O restante de nosso capítulo está repleto de várias atividades de homens, alguns deles Seus inimigos e alguns Seus amigos, mas todos trabalhando juntos para o fim de que o determinado conselho de Deus fosse cumprido, exatamente como Ele havia falado em Sua palavra.
Primeiros na cena estavam os judeus, os homens que eram Seus mais implacáveis inimigos. Eles eram grandes defensores do lado cerimonial das coisas e o Sábado da Páscoa era um dia de grande santidade aos olhos deles. Eles não podiam entrar na sala da audiência a fim de não se contaminarem, como vimos no último capítulo. Agora vemos a ideia de que os cadáveres de homens, por eles estimados como malfeitores, permanecer expostos à vista dos homens e do céu naquele dia era abominável para a alma ritualística deles. Eles estavam certos, pois assim tinha sido ordenado em Deuteronômio 21:23, mas esse era o tipo de preceito que eles amavam observar, enquanto negligenciavam questões de maior importância. Assim, a partir deles veio o pedido de que a morte pudesse ser apressada pela quebra das pernas, tão indiretamente eles fizeram sua parte em trazer o cumprimento de outra das muitas previsões que estavam focadas naquele grande dia em que Jesus morreu.
Poderíamos supor que a vida com o Senhor teria se prolongado muito além das outras, mas, na verdade, foi o oposto, justamente porque Ele deliberadamente entregou Sua vida. Se Ele não tivesse feito isso, o ato do homem ao crucificá-Lo não teria tido poder contra Ele. É significativo também que João não designe os dois homens como ladrões ou malfeitores; eles eram “outros dois” (v. 18). Não há necessidade de mencionar sobre o caráter particularmente ruim deles para aumentar o contraste. A grandeza do Filho Divino é tal que basta dizer que eles eram dois outros homens.
A ordem de Pilatos para os soldados, pela insistência dos judeus, teve dois efeitos. Primeiro, enquanto os outros dois tiveram as pernas quebradas para apressar o seu fim, nenhum osso de nosso Senhor foi quebrado, e assim a Escritura foi cumprida. A referência foi ao Salmo 34:20, e às instruções dadas quanto ao cordeiro pascal em Êxodo 12, e repetidas em Números 9. É digno de nota mostrar como o Espírito de Deus identifica plenamente a figura do cordeiro com o seu Antítipo, na medida em que o que é dito da figura é tratado como aplicado ao Antítipo. Com isto concordam as palavras de Paulo em 1 Coríntios 5, quando ele diz: “Cristo, nossa Páscoa, foi sacrificado por nós”.
Em segundo lugar, houve o ato cruel e vingativo do soldado com a lança. Vendo que Jesus estava morto e, portanto, ele não tendo autoridade para quebrar seus ossos, furou com uma lança no Seu lado. Ele fez isso sem o menor entendimento do efeito significativo de seu ato. Mais uma vez, porém, aquilo que estava no conselho Divino foi levado a efeito e uma Escritura encontrou seu cumprimento. O profeta Zacarias havia declarado que finalmente o espírito de graça e de súplicas deveria ser derramado sobre a casa de Davi e os habitantes de Jerusalém, “e olharão para Mim, a Quem traspassaram” (Zc 12:10). Observe aqui como o ato do oficial subordinado é tratado como sendo o ato daqueles cuja determinação e vontade estava na raiz de tudo o que aconteceu. O soldado romano era apenas o instrumento dessa iniquidade e, no dia vindouro, o remanescente arrependido de Israel reconhecerá isso como o ato de sua nação. Não reconhecemos ainda hoje que o golpe com a lança tenha sido a expressão terrível do ódio do homem e da rejeição desdenhosa contra o Filho de Deus?
Mas o evangelista concentra especialmente nossa atenção no resultado desse ato brutal – “logo [imediatamente – JND] saiu sangue e água”. Quando, no versículo 35, ele afirma solenemente a veracidade de seu registro, para que a fé possa brotar no leitor, é a isso que ele se refere. Em primeiro lugar, este ferimento no Seu lado demonstrou publicamente que a morte realmente aconteceu. Em segundo lugar, por ele, Seu sangue foi realmente derramado, e temos apenas que lembrar que “sem derramamento de sangue não há remissão” (Hb 9:22), para perceber a importância desse fato. Em terceiro lugar, sabemos o que os resultados graciosos e abençoados fluem para nós individualmente quando a nossa fé alcança e repousa no Cristo que morreu e no sangue que Ele derramou. Portanto, não nos surpreendemos com a forte afirmação de João sobre a verdade de seu testemunho.
Mas a água veio, assim como o sangue, e fazemos bem em estudar o significado disso, pois João repete isso em 1 João 5, onde lemos que Jesus Cristo veio “por água e sangue”, e é enfatizado que foi “não só por água, mas por água e por sangue”. Se o sangue fala de expiação judicial, a água fala de purificação moral, e ambos são absolutamente essenciais e só podem ser encontrados na morte de Cristo. Há sempre uma tendência a separar os dois. Quando João escreveu, a tendência era enfatizar a água e ignorar ou menosprezar o sangue, e essa tendência ainda é poderosamente sentida, pois há muitos que gostam de pensar em Sua morte como tendo um efeito moral sobre nós, enquanto eles não gostam do pensamento da morte pagando o salário do pecado e, assim, efetuando a expiação. É bem possível, é claro, encontrar o extremo oposto naqueles que não reconhecem nada além do sangue derramado por nossos pecados, e assim negligenciam a necessidade daquela limpeza moral da qual a morte de Cristo é a base totalmente essencial.
É notável também que no evangelho temos o registro de João quanto ao fato, enquanto em sua epístola tanto a água como o sangue são considerados como testemunhas, juntamente com o Espírito. Eles testemunham “que Deus nos deu a vida eterna, e esta vida está em Seu Filho”. Sangue e água saíram do Cristo morto. O Espírito foi derramado do Cristo ressuscitado e glorificado. Juntos, eles confirmam que, enquanto não há vida em nós, temos a vida eterna no Filho de Deus.
José de Arimateia aparece agora no exato momento em que pode servir ao propósito de Deus. Ele é mencionado em cada um dos evangelhos, e cada um nos fornece alguns detalhes específicos sobre ele. Mateus nos diz que ele era rico e discípulo. Marcos o chama de ilustre membro do sinédrio (ARA) que esperava pelo reino de Deus. Lucas diz que ele era um homem de bem e justo e que não consentiu com o conselho e a ação da grande maioria do sinédrio em condenar Jesus à morte. João admite que ele era um discípulo, mas oculto por medo dos judeus. Então, aparentemente, ele estava em uma posição semelhante à dos fariseus, que são mencionados em João 12:42-43. Ainda assim, maravilhoso dizer, nesta hora mais sombria, quando tudo parecia desesperadamente perdido – como testemunha a atitude dos dois discípulos indo para Emaús (Lucas 24) – José encontrou coragem e foi a Pilatos com o seu pedido para ter posse do corpo de Jesus. Marcos é quem nos diz que foi ousadamente a Pilatos, e a decisão do governador foi suplantada por Deus. Isaías havia declarado que ele deveria estar “com o rico na Sua morte”, embora o sepulcro que Lhe fora designado era com os ímpios. Os judeus não desejariam nada melhor do que Ele ser atirado violentamente sob um monte de pedras com os corpos dos malfeitores. Mas Deus cumpriu Sua própria palavra, primeiramente por meio da súbita ousadia de José, e então por meio da disposição de Pilatos de impedir os judeus por causa de sua irritação com eles. Deus tem influência em todos os lugares, e todas as coisas servem ao Seu poder.
Neste ponto, Nicodemos aparece novamente. Mencionado em nenhum outro lugar, ele é mencionado três vezes em nosso evangelho. Primeiro o vemos como um questionador, mas precisando ser humilhado e trazido de seu alto estado como fariseu, mestre e governante em Israel. Ele deve nascer de novo. No final do capítulo 7, o encontramos levantando uma leve objeção ao mau conselho e ações do sinédrio, e defendendo o que é certo, e sendo desprezado por sua crítica. Agora o encontramos dando um passo adiante se antecipando. Ele se identificou com Jesus em Sua morte mais definitivamente do que jamais fizera durante a Sua vida. Ele também deve ter sido rico, a julgar pela quantidade de especiarias que ele trouxe. A crise, que havia paralisado os homens que haviam se identificado ousadamente com o Senhor em Sua vida e ministério, havia estimulado esses homens tímidos e cautelosos, que até então não tinham sido reconhecidos, em ousadia e ação. Verdadeiramente a onipotência tem servos em toda parte!
Um outro ponto permanece no final do capítulo. Perto do local da crucificação havia um jardim e um túmulo na rocha. Somente Mateus nos diz que era o próprio túmulo de José; ele também diz que era novo; Lucas e João são mais enfáticos a esse respeito, dizendo que nenhum homem antes esteve ali. Foi predito por meio do salmista que Jeová não permitiria que Ele visse corrupção, como lemos no Salmo 16:10 “nem permitirás que o Teu Santo veja corrupção”. Isso significa que o corpo santo de Jesus, apesar de sofrer a morte, não foi de modo algum tocado pelo processo de desintegração e corrupção, como todos sabemos. Mas também significava que Seu corpo não deveria entrar em contato com isso externamente. Quando Deus cumpre a Sua palavra, Ele o faz com perfeição e plenitude.
Assim, como dissemos, quando o Filho Divino sofreu, a mão da Onipotência ofuscou todos os homens e todas as coisas, de modo que tudo o que Ele havia declarado por meio dos homens santos do passado pudessem acontecer. O conselho do Senhor permanecerá.


[1] N. do T.: Sistema de governo baseado no poder absoluto arbitrário de um monarca ou ditador.
[2] N. do T.: Calcanhar de ferro era um instrumento de tortura usado na antiguidade.
[3] N. do T.: Autocracia é o sistema político em que um só indivíduo exerce esse poder como governante e pode assumir as formas de despotismo, tirania, ditadura, oligarquia, autarquia ou monocracia.
[4]  N. do T.: “Jota” – Refere-se à letra hebraica “ י ” (yod), a menor no alfabeto hebreu (Mt 5:18). A palavra usada é “jota”, que é a palavra grega equivalente para a mesma letra. “Concise Bible Dictionary”, pág. 454.
[5]  N. do T.: “Til” – Suposto como se referindo ao menor sinal no alfabeto hebreu que serve para distinguir uma letra de outra, como “ ב ” diferencia-se de “ כ. ” – O menor ponto da lei deve ser cumprido. Mateus 5:18; Lucas 16:17. “Concise Bible Dictionary”, pág. 776.

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