Os parágrafos finais do
terceiro capítulo emergem da intromissão dos judeus em relação ao batismo de João
e sua reação a ele. Este capítulo começa com a reação do Senhor à interferência
deles. João alegremente tomou a posição de diminuir para que seu Mestre pudesse
crescer. O Mestre retirou-Se para a Galileia para que não se instituísse rivalidade,
o que seria tão doloroso para o Seu servo. Tal era o Seu cuidado atencioso com João.
Além disso, o próprio Senhor teria sido menosprezado se tratado dessa maneira. Teria
O colocado ao lado de João como uma espécie de líder partidário, semelhante, em
princípio, ao erro dos santos coríntios que associavam o nome de Cristo a Paulo,
Apolo e Cefas. Isso nunca deve acontecer.
A rota direta para a Galileia
passava pelo distrito de Samaria, de modo que “era-Lhe necessário passar por Samaria” por uma necessidade geográfica.
Mas havia também uma necessidade relacionada com a graça de Deus que obrigou a Ele
tomar uma estrada que O levou a uma cidade particular de Samaria, chamada Sicar.
Jesus, o Verbo que Se fez carne, estava cansado com a Sua viagem, um testemunho
à realidade da Sua Humanidade: e não apenas cansado, mas também faminto e sedento.
Ele sentou-Se no lado do poço por volta do meio-dia, quando a hora do maior calor
se aproximava. Nicodemos O procurou de noite. Ele procurou uma pecadora samaritana
ao meio-dia. O evangelho de João toma especial cuidado no registro de Suas conversas e relações às pessoas. Também
registra Suas conversas – geralmente de natureza controversa – com grupos de pessoas,
mas nem uma vez registra Suas pregações mais formais, como o Sermão da Montanha
ou as parábolas de Mateus 13. Muitos de nós reconhecem que é preciso mais habilidade
espiritual para lidar corretamente com um indivíduo do que dirigir-se a uma multidão,
e exige mais de nossa coragem. Um exemplo perfeito de negociação pessoal nos é apresentado
aqui.
Jesus começou pedindo
um copo de água fria. O Verbo feito carne toma o lugar de um humilde suplicante
diante de um espécime muito pecaminoso de Suas criaturas! Uma visão maravilhosa,
de fato! Pelo simples fato d’Ele ser um judeu, a mulher sentiu que Ele estava Se
depreciando; mas à luz da verdadeira situação podemos ver como Ele realmente Se
fez de nenhuma reputação e Se esvaziou. Mas essa Sua abordagem tão modesta e humilde
à mulher permitiu um início muito favorável à conversa. Se nós, que almejamos servir
à alma dos homens hoje, pudéssemos sempre abordá-los com humildade, seríamos realmente
sábios.
A mulher, despertada
pelo espanto e curiosidade, não resistiu em perguntar como tal pedido pôde ser feito.
A resposta de Jesus no versículo 10 expõe diante dela três coisas. Primeiro, o fato
de que Deus é um Doador. Ela conhecia um pouco da lei, mas a resposta O colocou
diante dela sob uma nova luz. Segundo, Ele indicou a misteriosa grandeza de Sua
própria Pessoa, visto que Ele era o Despenseiro do dom de Deus. Ela viu n’Ele, apenas
um judeu que pediu um copo de água. Quando ela O conhecesse, descobriria que Ele
era realmente o Doador de um Dom de valor insuperável. Terceiro, Ele indicou o Dom
como sendo “água viva”, desviando os
pensamentos dela do natural para o espiritual. Tanto Nicodemos como esta mulher
anônima eram semelhantes por não terem, desde o começo, qualquer noção do significado
das palavras do Senhor, muito menos das coisas de que Ele falou. Contudo, aqui novamente,
havia alguma indicação dessas coisas no Velho Testamento. Duas vezes no livro de
Jeremias, por exemplo, Jeová Se apresentou como a “Fonte das águas vivas” (Jr 2:13 – TB; 17:13).
A incompreensão da mulher
levou a mais desdobramentos contidos no versículo 14, que novamente parecem se dividir
em três direções. Primeiro, aquele que bebe da água viva como o dom de Cristo, terá
essa fonte “nele”, permanecendo em seu
próprio ser. Então, ela estará nele como uma “fonte” de água “a jorrar para
a vida eterna” (ARA). Um manancial de vida interior que se jorre à altura de
sua Fonte! Por fim, beber dessa água e possuir tal fonte produzirá satisfação permanente.
O Senhor usou uma expressão muito forte – “nunca
mais terá sede” (ARA).
Ao dizer “água viva” o Senhor Se referia ao Espírito
de Deus como é evidente quando chegamos ao capítulo 7:39. No capítulo anterior,
o Filho Unigênito é um Dom de Deus para o mundo, mas neste capítulo, o Espírito
de Deus é um Dom de Deus para o crente, mas um Dom que é administrado pelo Filho
de Deus, que era o Orador que falava, sentado ao poço de Sicar. Pelo Espírito temos
a vida interior – Ele é mencionado em outro lugar como “o Espírito de vida em Cristo Jesus” (Rm 8:2) – e por Ele a vida interior
jorra até a Fonte da vida acima. Desta forma, o Senhor indicou a vida de comunhão,
adoração e satisfação que Ele estava prestes a disponibilizar para o crente. Como
resultado, o crente hoje pode antecipar o gozo milenar, apresentado figurativamente
no início dos milagres em Caná, na Galileia: e não apenas antecipar, mas também
conhecê-lo em uma medida mais verdadeira e de maneira mais espiritual.
Antes de prosseguirmos
com o nosso capítulo, observemos a notável sequência do ensinamento desde o registro
daquele primeiro milagre. Tivemos a obra realizada em nós – novo nascimento
pelo Espírito e pela palavra. Depois o testemunho prestado a nós, o qual, ao recebê-lo, confirmamos que
Deus é verdadeiro. Em terceiro lugar, o dom do Espírito conferido a nós, estando
em nós como um manancial sempre fluindo, jorrando para a Fonte eterna. Aqui temos
apresentado a nós, de uma maneira embrionária, grandes realidades que são
expandidas nas epístolas.
Prosseguindo em nosso
capítulo, notamos que, embora a mulher ainda estivesse sem clareza quanto à importância
da “água viva”, as palavras adicionais
do Senhor havia, ao menos, despertado seus desejos suficientemente para levá-la
a pedir por essa água. Antes de dá-la, sua consciência tinha que ser alcançada e
convicção do pecado ser produzida. Ao lhe ordenar que chamasse seu marido, o Senhor
colocou o dedo sobre um ponto especialmente sensível em sua vida, e o que se seguiu
foi que ela pôde ver que sua triste história estava como um livro aberto diante
de Seus olhos. Por seu lado, ela imediatamente viu e confessou que Ele era um profeta;
assim, implicitamente, declarando-se culpada por Sua acusação; contudo, como tantas
vezes acontece quando existe uma consciência ferida, ela se esforçou para desviar
a conversa para uma discussão religiosa, eliminando assim a questão pessoal.
Desde muito tempo, o lugar
onde a adoração deveria ser oferecida a Jeová era uma questão inflamada. Teria Gerizim
substituído Moriá, como os samaritanos afirmavam? O Senhor aproveitou a oportunidade
para mostrar à mulher não apenas seu pecado pessoal, mas também a falta de
importância da “adoração” em que ela
e seu povo haviam se engajado. Ao dizer: “Vós
adorais, o que não conheceis” (ARA), Ele rejeitou essa adoração; ao dizer: “A salvação pertence aos judeus” (JND),
Ele a convenceu de sua condição perdida. Ela estava entre os gentios – “estranhos aos concertos da promessa, não tendo
esperança e sem Deus no mundo” (Ef 2:12). Assim, mesmo discutindo a questão
da adoração, ela não estava além do alcance de golpes pontiagudos em sua consciência.
O Senhor, no entanto,
levou toda a questão da adoração a um plano muito mais elevado. Ele falou em adorar
a Jeová à luz da revelação que Ele estava trazendo – exatamente como “o Pai”. Isto imediatamente levantou a
questão daquela ordem cerimonial de coisas que conectava a adoração com um lugar
santo na Terra. A lei havia vinculado as pessoas estritamente a um lugar santo onde
o nome de Jeová estava estabelecido; daí a disputa prolongada entre judeus e samaritanos:
Ele ergueu os pensamentos dela para Deus que é um Espírito, revelando-O como Pai.
Essa nova revelação estava
anunciando uma nova “hora”, que de fato
já havia começado. A adoração que deve caracterizar essa hora deve estar de acordo
com a revelação que a deu causa. Deus, que é Espírito, está buscando essa adoração
como Pai, então agora adoração para ser aceitável deve ser “em espírito e em verdade”. Observe esse adicional “IMPORTA”. A adoração não é algo opcional
ou variado conforme nossas preferências. Deus deve ser adorado da maneira
que Ele mesmo prescreve. Tudo o mais que possa pretender ser “adoração” não é adoração de forma
alguma.
A adoração verdadeira
é “em espírito”; isto é, não em carne,
não em atitude corporal. Esta palavra de nosso Senhor nega a linha ritualística
e cerimonial das coisas que têm sido
uma armadilha para muitos. Nossa capacidade de oferecer adoração em espírito
repousa na posse do Espírito de Deus – a Fonte da água viva brotando para a vida
eterna – como também é indicado em Filipenses 3:3. O Espírito de Deus pode envolver
nosso espírito na verdadeira adoração a qualquer momento e em qualquer lugar; não
apenas em algum santuário sagrado como no judaísmo.
Então novamente a adoração
deve ser “em verdade”; isto é, à luz
de tudo o que Deus revelou de Ele mesmo estar em Cristo. Isto nega a linha racionalista
das coisas, que também é tão comum. Os homens falam, por exemplo, de adorar
“a grande primeira causa”[1] à luz
das maravilhas da natureza, enquanto ignora ou recusa a verdade concernente a Ele,
como Se fez conhecido em Cristo. Somente n’Ele conhecemos o Pai que deve ser adorado.
Se conhecermos o Pai dessa maneira, nosso coração está destinado a ser preenchido
com adoração daquela natureza espiritual que é aceitável por Ele.
O Pai procura adoradores
desse tipo. Ele Se fez conhecido para produzir essa resposta. O fluxo descendente
de Seu amor, na revelação feita a nós, produz o fluxo ascendente do amor que
reage em adoração. Isto é aceitável para Ele e Ele procura isto.
A mulher samaritana sabia
da promessa do Messias, e essas maravilhosas palavras do Senhor, juntamente com
a convicção interior do pecado que a havia alcançado, converteram os pensamentos
dela para Seu advento. A resposta dela parece indicar que ela percebeu um caráter
messiânico nas declarações do Senhor. O Senhor imediatamente e com a maior clareza
revelou-Se a ela como o Cristo. Ela evidentemente aceitou essa revelação imediatamente;
e voltando para a cidade, em suas palavras para os homens, divulgou o que estava
por trás de sua bem disposta fé. Ele deve ser o Cristo. Não havia Ele lhe contado
todas as coisas que ela sempre fez? Não em detalhes, é claro, mas sim, Ele havia
mostrado a ela, como num lampejo, que tudo o que ela já tinha feito estava resumido
em uma única palavra – pecado. É exatamente o mesmo hoje. A fé em Cristo anda de mãos dadas com a verdadeira
convicção do pecado.
O belo parágrafo dos versículos
31-38 vem como um parêntese na história. As palavras do Senhor aos discípulos, no
versículo 32, têm sido traduzidas: “Eu encontrei uma comida para comer, a qual vocês
não conhecem”. Ele estava trabalhando por “fruto
para a vida eterna”, como Ele indica no versículo 36, e ver esse fim sendo alcançado
na concessão da bênção sobre a samaritana pecadora era um deleitável alimento para
Ele. Foi “a vontade daqu’Ele que Me enviou”,
disse ele, fazer isso. A luz que Ele trouxe deveria brilhar para cada homem, como
aprendemos no começo deste evangelho; então aqui a vemos brilhando sobre uma pecadora
fora dos limites do judaísmo. A vontade de Deus, a
obra de Deus e a vida eterna para o homem caminham juntas aqui; e quão abençoado
para nós é que elas caminhem assim. Além disso, o Senhor indicou aos Seus discípulos
que, quando chegasse a vez deles, deveriam ter uma participação nesta obra tão abençoada,
seja semeando ou colhendo. Neste caso, o próprio Senhor estava fazendo a semeadura.
Quando chegou a hora da colheita, registrada em Atos 8, a colheita foi muito grande.
O parágrafo nos versículos
39-42, conclui a história. Os homens vieram a Cristo como resultado do testemunho
da mulher e alcançaram para si mesmos a mesma convicção. Muitos creram por causa
do que ela disse, e muitos mais como resultado de ouvi-Lo. Eles creram e desejavam
grandemente a Sua companhia.
Em sua confissão, eles
foram ainda mais longe do que a mulher. Ele não era apenas o Cristo, mas também
“o Salvador do mundo”. O mero orgulho
religioso poderia ter feito com que eles se gabassem de que ali estava o Salvador
do samaritano igualmente com o judeu; mas somente a fé poderia tê-los levado a tomar
posse do grande pensamento de Deus para “o
mundo”, de acordo com João 3:16. Eles tinham ouvido e conheceram;
e, sustentando a audição e o conhecimento, estava a fé.
Ao relacionar tudo isso,
o evangelista nos levou ao fato de que Jesus é o Cristo. O próximo capítulo,
como veremos, nos conduz ao fato de que Ele é o Filho. Colocando os dois
juntos, somos novamente levados ao ponto indicado no último versículo de seu evangelho
(João 20).
No último parágrafo deste
capítulo, encontramos o Senhor novamente na Galileia, e isso nos leva ao segundo
dos sinais milagrosos que João menciona.
Na Galileia, ele encontrou uma recepção que não lhe fora concedida em Jerusalém,
e este segundo sinal também tinha ligação com a cidade de Caná, da Galileia.
O primeiro sinal prefigurou
o tempo previsto em Isaías 62:4-5, quando o dia do casamento de Israel tiver chegado,
e, da água purificadora, o vinho da alegria será produzido. O segundo sinal apresentou
o Senhor como aqu’Ele que pode trazer vida e cura quando a morte parece iminente.
Este judeu nobre não manifestou a forte fé que marcou o centurião gentio de Mateus
8. Sua tendência como judeu era exigir sinais e maravilhas antes de crer; e a crença
desse tipo não é fé genuína, como vimos no final de João 2. Ainda assim, embora
fraca, a fé estava presente no coração desse homem.
Ela se manifestou de duas
maneiras. Primeiro, persistiu em seu apelo, quando, a princípio, a resposta do Senhor
parecia desfavorável, expondo totalmente a necessidade desesperada do filho. Em
segundo lugar, quando a resposta que ele recebeu foi uma simples ordem de retorno
porque seu filho vivia, ele aceitou a palavra de Jesus sem nenhum sinal diante de
seus olhos. Aqui, de fato, são as marcas da verdadeira fé; ela persiste e aceita
a palavra de Deus sem sinais, maravilhas ou sentimentos.
O Senhor confirmou Sua
própria palavra e no dia seguinte o homem viu que sua confiança não havia sido em
vão. Jesus disse: “o teu filho vive”;
No dia seguinte, seus servos o encontraram dizendo: “o teu filho vive”, embora não tivessem ouvido Jesus falar. A vida sendo
concedida até mesmo no momento da morte é evidentemente o pensamento principal.
E isso é exatamente o que o homem em geral precisa, e Israel em particular: não
apenas a cura, mas a vida. Este foi o segundo sinal, e encontraremos muitas
instruções sobre a vida – sobre Jesus como sua principal Fonte e Doador – nos capítulos
seguintes.
[1] N. do T.: A “primeira causa”, segundo o raciocínio filosófico, seria o
que deu origem ao universo.