No entanto, os
líderes sentiram que tinham decididamente resolvido a questão, e retiraram-se para
o conforto de seus lares, enquanto Jesus, o Verbo feito carne, sem lar, passava
a noite no Monte das Oliveiras. Retornando de manhã cedo ao templo, Ele foi confrontado
por alguns desses próprios adversários com um caso que, como esperavam, O apanharia
nas dificuldades de um dilema. A multidão poderia ser ignorante quanto à lei e ser
maldita; Seus adversários conheciam bem a lei e se consideravam abençoados por ela;
eles também conheciam a bondade e a graça de Jesus. Então eles colocaram a mulher
pecadora no meio e citaram a lei de Moisés contra ela. O resultado não foi o que
eles esperavam. O Senhor dirigiu a lei como um holofote sobre eles, e seu poder
convincente alcançou até mesmo a consciência endurecida deles. Estes hipócritas
religiosos duplamente mortos, que falavam sem hesitação sobre a maldição que se
aproximava da multidão, viram agora a maldição da lei surgindo contra eles mesmos
e desapareceram.
A ação de Jesus ao inclinar-Se
e escrever no chão é muito significativa. Aqui estava, se assim podemos dizer, o
dedo que uma vez escreveu a lei em duas tábuas de pedra – a lei que escreveu uma
sentença de destruição contra Israel. O mesmo dedo havia escrito uma sentença de
condenação contra uma orgulhosa monarquia gentia nos dias de Daniel, sobre a parede
estucada do palácio real. Os materiais onde foram escritas são impressionantes.
A lei inflexível escrita em pedra inflexível; consequentemente o desprezador da
lei de Moisés “morre sem misericórdia”
(Hb 10:28), já que a lei não pode ser flexionada como uma borracha. A parede
estucada é frágil e facilmente quebrada, como os reinos humanos mais fortes e orgulhosos.
Jesus escreveu no chão. O que Ele escreveu lá não nos é dito, mas sabemos que Ele
estava indo para o “pó da morte” (Sl
22:15), onde Ele escreveu uma declaração completa do amor de Deus.
Em Apocalipse 5, o livro
de julgamento é colocado à vista, e um anjo forte em voz alta lança o desafio: “Quem é digno de abrir o livro e de desatar
os seus selos?” Jesus emitiu exatamente esse desafio, embora em palavras diferentes.
O resultado do desafio então será que “ninguém
no céu, nem na Terra, nem debaixo da Terra” foi capaz de abrir ou mesmo olhar
para aquele livro; assim como aqui todos os acusadores se afastaram. Então o “Leão” que Se tornara o “Cordeiro” é deixado sozinho para executar
os julgamentos. Aqui “ficou só Jesus e a
mulher que estava no meio”; todavia não foi a hora do julgamento, mas da graça,
e assim aqu’Ele que tinha o direito de condenar não o exerceu. Ele estava “cheio de graça e verdade”. Ele virou o
holofote da verdade sobre os hipócritas e estendeu a graça à pecadora, com vistas
à libertação dela do pecado.
Desse incidente surgiu
uma solene controvérsia entre o Senhor e os judeus, e o relato dela preenche o restante
do capítulo. Suas palavras de abertura, no versículo 12, referem-se ao incidente
e é a chave para o que se segue. No início do evangelho, vimos que o Verbo era o
Originador da vida e era a Luz que brilhava nas trevas. João 3-7 nos apresentou
Ele como a Fonte da vida eterna. Agora Ele vem diante de nós como a Luz, e no final
de João 12 o resultado dessa apresentação é resumido para nós. Jesus é a luz não
somente de Israel, mas do mundo, e aquele que O segue terá a luz da vida que
foi manifestada n’Ele, não importando de onde ele tenha vindo. Aquele que não O
seguiu permaneceu em trevas, mesmo que ele fosse o judeu mais ortodoxo que se possa
imaginar.
Em João 5, o Senhor havia
indicado quão amplo era o testemunho que Lhe era prestado, de modo que Ele não estava
na posição de Se chegar até eles com credenciais autoproduzidas. Os fariseus agora
se agarram às palavras que Ele então usou e tentaram condená-Lo com base na inconsistência
verbal. Ele não retirou Suas palavras nem as explicou. Ele simplesmente apelou para
coisas de uma natureza muito mais elevada que os condenou por ignorância e erro.
Como meros homens, seu conhecimento próprio é pequeno. O que está por trás deles
e o que está adiante, ambos estão envoltos em um véu de mistério impenetrável. Não
havia tal limitação com Ele. Seu conhecimento próprio era divino e eterno. Esses
fariseus eram tão ignorantes de si mesmos quanto eram
d’Ele. Eles também estavam em erro, uma vez que todos os seus julgamentos foram
formados pela carne, na qual nenhum bem habita. No julgamento carnal deles em
relação às Suas palavras, eles estavam errados, embora espertos em atacar o que
parecia ser uma contradição.
No caso da mulher, o Senhor
havia recusado o lugar do juiz. Será Seu num dia vindouro, mas não hoje; e Ele o
nega novamente aos fariseus no versículo 15. No entanto, em Seu aviso, Ele novamente
Se compromete com um paradoxo verbal, pois afirma a verdade de Seus juízos, visto
que Ele é tão totalmente um com o Pai que O enviou. Na era vindoura, todo julgamento
será d’Ele, mas Ele o executará em pleno acordo com o Pai. Assim também na questão
do testemunho de Si mesmo, todo o peso da autoridade do Pai estava por trás dele.
Esta referência ao Pai, de Sua parte, só serviu para trazer à luz a completa ignorância
da parte deles. O Pai só pode ser conhecido no Filho, a Quem eles não receberiam.
Se eles tivessem conhecido o Filho, eles conheceriam o Pai.
O versículo 20 testemunha
o poder dessas palavras de nosso Senhor como também o poder de Sua Pessoa. Suas
palavras fizeram com que eles O quisessem prender, mas havia algo sobre Ele que
os impedia, até que chegou a hora em que Ele deu a Si mesmo à vontade deles. O Senhor,
porém, continuou Seu testemunho a eles.
Ele estava seguindo o
caminho deles e os procurando em graça. Estava chegando um momento em que Ele seguiria
Seu próprio caminho e eles O buscariam inutilmente e morreriam em seus pecados.
Então eles seriam cortados d’Ele e de Deus para sempre. Essa completa mudança
na situação não seria apenas justa, mas apropriada. Novamente no versículo 22 vemos
completa ignorância com os judeus, e que a mente deles era vil até o mais baixo
nível. Eles eram de fato “cá de baixo”
(ARA) em todos os sentidos das palavras. Isso levou o Senhor a traçar o nítido contraste
entre eles e Ele mesmo. Primeiro a origem: eles são de baixo; Ele é de cima.
Segundo, quanto ao caráter: eles são deste mundo; Ele não é deste mundo.
Terceiro, quanto ao fim: eles estavam para morrer em seus pecados e serem excluídos de Deus; Ele estava indo para o
Pai, como Ele já havia dito. Somente a fé n’Ele poderia evitar o destino deles –
a fé que iria descobrir n’Ele o “EU SOU”.
Em Êxodo 3:14, Deus revelou-Se como o grande “EU SOU”, portanto, essa declaração de Jesus era virtualmente uma reivindicação
à Deidade.
Os judeus não haviam percebido
isso até então, mas evidentemente viram que Sua reivindicação era grande, pois imediatamente
perguntaram: “Quem és tu?” Eles receberam
uma resposta surpreendente: “Exatamente
o que venho dizendo que Sou” (AIBB). Ele era a verdade, e Sua linguagem era
uma apresentação verdadeira e exata de Si mesmo. Isso não pode ser dito do melhor
e mais sábio dos homens. Se disséssemos, não poderíamos nos manifestar com precisão
em palavras. Se pudéssemos, deveríamos evitar fazê-lo, sendo o que somos. Suas palavras
foram a verdadeira revelação de Si mesmo; como poderíamos esperar quando sabemos
que Ele é o Verbo que Se fez carne. Vamos ponderar profundamente nesta palavra de Jesus, pois
traz consigo a certeza de que nos evangelhos temos uma real e verdadeira revelação
de Cristo. Eles nos dão o que Ele fez assim como o que Ele disse; mas somente por
Suas palavras podemos verdadeiramente conhecê-Lo, embora nunca O tenhamos
visto nos dias de Sua carne. O que Ele disse que é, Ele é totalmente.
O versículo 26 nos mostra
que tudo o que Ele tinha a dizer sobre os homens era igualmente a verdade, porque
tudo era falado a respeito do Pai e vindo do Pai. Eles eram totalmente ignorantes
quanto ao Pai, e totalmente incrédulos quanto ao Filho presente entre eles. Quando
eles levantassem o Filho do Homem, deveria haver uma demonstração do fato de que
Ele realmente era o “EU SOU” e que, em
todos os sentidos, o Pai estava com Ele. Sua elevação foi Sua morte, e, após
consumada, ressurreição sobreviria, que O declararia ser o “Filho de Deus em poder, segundo o Espírito de santidade” (Rm 1:4 –
JND). Então eles saberiam, no sentido de ter uma demonstração perfeitamente ampla
diante de seus olhos. Alguns poucos sabiam, no sentido de ser iluminado pela demonstração,
mas a massa deliberadamente fechou os olhos para a luz. Ainda assim, a demonstração
de que Ele era total e sempre agradável ao Pai estava à disposição de todos os olhos
para ver.
O poder de Suas palavras
foi sentido e muitos tomaram o lugar de crer n’Ele. O Senhor os testou dizendo-lhes
que aquele que não era um mero seguidor nominal, mas um verdadeiramente discípulo
é caracterizado por continuar em Sua palavra; isto é, em toda a verdade que Ele
trouxe. A continuidade é sempre o teste da realidade, e onde isso existe, a verdade
é conhecida em seu poder emancipador. O diabo escravizado pelo poder de sua mentira:
Cristo liberta pelo poder da verdade de Deus. Ele não os elogiou dizendo que, como
nação de Deus, eles eram livres. Ele colocou diante deles a verdadeira liberdade
espiritual que é o resultado do conhecimento da verdade. Isso era o que eles precisavam, e nós
também!
Muitos falharam no teste,
pois seu orgulho nacional e religioso foi ferido. Eles poderiam ser a semente de
Abraão segundo a carne, mas para afirmar que nunca foram escravos de ninguém, enquanto
estavam em completa sujeição aos romanos, apenas provava sua cegueira. Por Sua declaração
enfática do versículo 34, Jesus dirigiu os pensamentos deles para a escravidão do
pecado. Os homens não podem praticar o pecado sem estarem escravizados por ele –
um tremendo pensamento para cada um de nós. Ora o lugar do escravo é do lado de
fora da casa, mas em contraste com ele está o Filho, cujo lugar é dentro e para
sempre. E o Filho não só tem esse lugar permanente, mas Ele pode libertar o escravo,
levando-o para aquilo que é, de fato, liberdade. Assim, aquele que é um dos “discípulos de fato”(KJV) torna-se “livre
de fato” (KJV).
Nessas palavras de nosso
Senhor, registradas nos versículos 32 e 36, podemos certamente ver o germe daquilo
que é mais plenamente exposto nas epístolas. Romanos 6 revela a nossa morte com
Cristo, levando-nos a ser “libertado do pecado”
(KJV), que por sua vez leva à “novidade de
vida”. Isso responde ao versículo 32 do nosso capítulo; enquanto o versículo
36 encontra sua contrapartida em Gálatas 4:1-7, conectada com 5:1. A redenção de
debaixo da lei, operada pelo Filho, juntamente com o envio do Espírito do Filho
em nosso coração, nos trouxe à liberdade na qual devemos permanecer firmes. O Filho
nos libertou de fato.
Nos versículos 37-44,
o Senhor muito solenemente expôs a falsidade da pretensão deles de ser filhos de
Abraão. Haveria algum valor em sua reivindicação se eles tivessem se mostrado seus
filhos em um sentido espiritual, mostrando sua fé e fazendo suas obras. Na verdade,
eles foram marcados pelo ódio e pelo espírito homicida. Caim havia mostrado esse
espírito, e ele era “do maligno e matou a
seu irmão” (1 Jo 3:12); assim também eles faziam as ações de seu pai e, assim,
manifestavam-se como sendo de seu pai, o diabo, que desde o princípio era homicida
e não tinha nenhuma verdade nele. O ódio e a mentira são ambos gerados pelo diabo,
e aqueles caracterizados por essas duas coisas, portanto, demonstram sua origem
espiritual.
Jesus fala de Si mesmo,
no versículo 40, como um “Homem que vos
tem dito a verdade”. Outros falavam d’Ele como um homem, e não viam n’Ele mais
do que isso; mas é impressionante que neste evangelho, que O apresenta como o Verbo
feito carne, Ele fale de Si mesmo como Homem. Assim, a verdade é balanceada para
nós, e tanto Sua Divindade essencial quanto Sua perfeita Humanidade tornaram-se
abundantemente claras. Ele estabeleceu a verdade, e aqueles que tinham Deus como
seu Pai amariam a verdade e O amariam. Seus oponentes tinham uma origem maligna
e não podiam ouvir Sua palavra – a revelação que Ele trouxe. Consequentemente,
eles eram totalmente incapazes de entender a Sua linguagem – as palavras
com as quais Ele revestiu a revelação. Isto é o que o versículo 43 nos diz.
Note como as palavras
do Senhor destroem totalmente a falsa ideia sustentada por muitos sobre a “paternidade
universal de Deus”; mas esses religiosos judeus chegaram a ponto de reivindicar
uma paternidade universal de Abraão e, portanto, de Deus, por sua nação. Jesus disse:
“Se Deus fosse o vosso Pai ...”. Isso foi uma negação. O diabo era o pai
deles. A paternidade de Deus é limitada àqueles que creem, como afirma Gálatas 3:26.
Diante destes judeus estava
Um a Quem nem mesmo Seus mais amargos inimigos puderam convencer do pecado, e Ele
lhes disse a verdade. Essa verdade honrou o Pai e libertou os homens da morte, mas
eles recusaram a verdade, O desonraram, O chamaram de samaritano e disseram que
Ele tinha um demônio. Eles se gloriaram em Abraão, embora admitissem que ele estava
morto há muito tempo. O Senhor os encontrou como Alguém que sabia que Ele tinha
vindo do Pai, que era honrado pelo Pai e que entraria em Seu próprio dia, para o
qual Abraão havia esperado, e que pela fé ele o viu.
Os judeus, como sempre,
se equivocaram completamente quanto às Suas palavras. Ele falou de Abraão vendo
Seu dia, e eles pensaram que isso significava uma reivindicação de Sua parte de
ter visto Abraão. O erro deles serviu para trazer à tona o grande e enfático pronunciamento:
“Antes que Abraão existisse, EU SOU”.
Em certo momento, Abraão “existiu”. O
verbo usado aqui é o mesmo de João 1:14, onde lemos que o Verbo “Se fez” ou “Se tornou” (JND) carne. O verbo para “Sou” é aquele que significa a existência permanente, como usado em
João 1:18; o Filho “está” no seio do
Pai; e é usado no passado, como para o Verbo na eternidade passada, em João 1:1
e 2. Jesus, portanto, disse: Antes que Abraão viesse a existir, Eu eternamente Sou.
Esta tremenda
reivindicação moveu os judeus a intentarem Sua morte por apedrejamento, e se a
afirmação fosse falsa, eles teriam razão em fazê-lo. Certamente move nosso coração
para adorá-Lo e para admirar a graça que O trouxe para a Humanidade e de forma tão
humilde para a nossa salvação.