Na verdade não há uma
interrupção onde este capítulo começa em nossas Bíblias. A resposta do Senhor, que
começou no último versículo do nono capítulo, continua até o final do versículo
5 deste capítulo. Ele lhes propôs a parábola do Pastor e do rebanho, e ilustrou
o ponto, visto que não havia apenas “as ovelhas”,
mas também as “Suas próprias ovelhas”
(ARA). Estas últimas conheciam a voz do Pastor e assim O reconheceram. O homem do
capítulo anterior era uma das “Suas próprias
ovelhas”.
O sistema religioso instituído
por meio de Moisés era como um aprisco[1]. Desse
modo, os judeus foram separados dos gentios, aguardando a vinda do verdadeiro Messias.
A porta de entrada havia sido prescrita pelas vozes dos profetas: Ele devia nascer
de uma virgem, em Belém etc. Impostores haviam aparecido, mas sem essas credenciais,
eles haviam procurado uma entrada de alguma outra forma e, por isso, se denunciaram.
Agora o verdadeiro Pastor aparecia entrando pela porta, que havia sido mantida aberta
para Ele pela providência de Deus. Foi dito: “Eis que não tosquenejará nem dormirá o Guarda de Israel” (Sl 121:4),
e aquele olhar e mão vigilantes impediram que Herodes fechasse a porta de entrada
para Ele. Deus providenciou para que Ele tivesse pleno acesso às ovelhas.
Mas agora vem o que ninguém
havia antecipado: Ele entra no aprisco não para reformá-lo ou melhorá-lo, mas para
chamar uma eleição dentre a massa – “Suas
próprias ovelhas” – e conduzi-las a algo novo. Israel tinha sido a nação eleita,
mas agora é inteiramente individual, pois Ele chama Suas próprias ovelhas “pelo nome”, estabelecendo contato pessoal
com cada uma delas. Além disso, Ele as lidera, saindo primeiramente Ele mesmo: elas
O seguem porque esse contato existe e elas reconhecem Sua voz e confiam n’Ele. No
começo deste evangelho, esses eleitos eram chamados de “nascidos... de Deus”, sendo “todos
quantos O receberam” (Jo 1:12-13).
As ovelhas de Cristo não
seguem estranhos, não porque tenham um amplo conhecimento deles e conheçam bem suas
vozes, mas porque “não conhecem a voz dos
estranhos”. Elas conhecem bem a voz do pastor e isso é suficiente. Quanto a
todos os outros, elas simplesmente dizem: Essa não é a voz do pastor. Temos aqui
em forma de parábola o mesmo fato básico como João declarou, quando escreveu às
crianças da família de Deus, dizendo: “Não
vos escrevi porque não soubésseis a verdade, mas porque a sabeis, e porque
nenhuma mentira vem da verdade” (1 Jo 2:21). Como Paulo
também diz que devemos ser “sábios no
bem, mas símplices no mal” (Rm 16:19). Vamos cultivar esse conhecimento com
nosso Senhor, pois isso desenvolve um instinto espiritual que preserva nossos pés
de se afastarem.
Cegos como sempre, os
fariseus não entendiam nenhuma dessas coisas; mas isso não impediu o Senhor de seguir
Sua parábola um pouco mais adiante. Ele era a própria porta; pois toda saída do
aprisco, e toda entrada no novo lugar de bênção a ser estabelecido, deve ser por
Ele. Essa nova bênção de que geralmente falamos como Cristianismo, em contraste
com o judaísmo. O versículo 9 começa a enumerar as bênçãos. A linguagem de parábola
ainda é usada, como evidenciado pela palavra “pastagens”, mas ao dizer: “se
alguém entrar”, Jesus mostrou que Ele estava falando de acordo com aquele
grande capítulo do Velho Testamento que termina: “Vós pois, ó ovelhas Minhas, ovelhas do Meu pasto: homens sois” (Ez 34:31).
A bênção inicial do Cristianismo
é a salvação. Ela nos encontra quando entramos por Cristo, a porta. A maioria das
referências à salvação no Velho Testamento tem a ver com a libertação de inimigos
e problemas. A emancipação espiritual que nos vem pelo evangelho não poderia ser
conhecida naquela época, uma vez que a obra em que se baseia não havia sido realizada.
Que Hebreus 9:6-14 e 10:1-14 seja lido e digerido interiormente, e este fato se
fará muito claro. Somente pela morte e ressurreição de Cristo a porta é aberta para
a salvação em sua plenitude.
As palavras “entrará e sairá” indicam liberdade. No
judaísmo, não havia liberdade de acesso a Deus, visto que “o caminho para o Santo dos Santos ainda não havia sido feito manifesto”
(Hb 9:8 – JND); nem tinham permissão para sair para as nações e espalhar qualquer
conhecimento de Deus que tivessem. Eles foram trancados no aprisco da lei de Moisés
e suas ordenanças, e lá eles tiveram que ficar. Como Cristãos, temos “ousadia para entrar no santuário [Santo dos Santos – ARA] pelo sangue de Jesus”, e podemos sair como
os primeiros crentes que “iam por toda parte,
anunciando a palavra” (At 8:4). Em ambas as direções, somos levados muito além
dos privilégios do aprisco judaico.
Então, em terceiro lugar,
podemos “achar pastagens”. Isso pode
levar nossos pensamentos de volta a Ezequiel 34, onde encontramos uma tremenda acusação
aos antigos pastores de Israel. Estes líderes religiosos alimentaram a si
mesmos e não às ovelhas, e deram um exemplo tão ruim, que os mais fortes entre as
ovelhas oprimiam os mais fracos e tinham “pastado
o bom pasto”, e com seus pés haviam pisado “o resto de vossos pastos” (Ez 34:18). Consequentemente, para os pobres
do rebanho não havia pasto algum. Jesus, o verdadeiro Pastor de Israel, conduz Suas
próprias ovelhas a uma abundância de alimento espiritual.
Nos versículos 10 e 11,
obtemos o contraste entre o ladrão e o Bom Pastor. Esses ladrões e roubadores eram
homens como os mencionados por Gamaliel em Atos 5:36-37; impostores egoístas que
trouxeram destruição e morte. O verdadeiro Pastor trouxe vida; entregando Sua própria
vida para fazer isso. Se Ele não tivesse vindo e morrido, não haveria vida alguma
para homens pecadores; tendo feito isso, a vida é disponibilizada, e é concedida
em abundante medida à Suas ovelhas. Vivemos à luz da abundante revelação de Deus
que nos alcançou no Verbo feito carne, por isso temos abundância de vida. A vida
dada aos santos em todas as épocas pode ser intrinsecamente a mesma, mas sua plenitude
só pode ser conhecida sendo Deus plenamente revelado. Isso é indicado em 1 João
1:1-4.
Em seguida, temos, nos
versículos 12-15, o contraste entre o mercenário e o Bom Pastor. O mercenário não
é necessariamente mau como o ladrão; mas sendo um homem que trabalha por salário,
seu interesse é primordialmente monetário. As ovelhas são de interesse para ele,
na medida em que são o meio de seu sustento. Ele realmente não se importa tanto
com elas a ponto de arriscar sua pele por elas. É muito diferente com o Pastor,
que dá a vida por elas e estabelece um elo de maravilhosa intimidade. Suas ovelhas
são homens e, portanto, capazes de conhecê-Lo de maneira íntima; tanto que Seu conhecimento
dos homens e o conhecimento dos homens em relação a Ele podem ser comparados ao
conhecimento do Pai do próprio Filho e o conhecimento do Filho do Pai. E devemos
lembrar de que é pelo conhecimento d’Ele que chegamos a conhecer o Pai. Nada parecido
com isso foi possível no aprisco judaico antes do Pastor chegar.
As palavras do Senhor
no versículo 16 acrescentam outra revelação inesperada. Ele estava prestes a encontrar
ovelhas que tinham estado fora daquele aprisco. Haveria o chamado de uma eleição
dentre os gentios. Vemos o início deste princípio em Atos – o etíope em Atos 8,
Cornélio e seus amigos em Atos 10. Muitas vezes, insistimos na palavra “necessário”[2]
que ocorre várias vezes em João 3: alguma vez já louvamos a Deus por esse “necessário [Me convém – ARC]” (TB) aqui?
– “estas também é necessário que Eu as
traga” (TB). Os pecadores dentre os gentios tornam-se os objetos da obra divina.
Eles ouvem a voz do Pastor e são ligados a Ele. Então, como resultado deste duplo chamado – do
aprisco judaico e dos gentios desgarrados – deve ser estabelecido um rebanho, mantido
unido sob a autoridade do único Pastor. A palavra final neste versículo é definitivamente
“rebanho” e não “aprisco” (como na KJV). Ovelhas mantidas juntas por restrições externas:
isso era o judaísmo. Ovelhas constituindo um rebanho pelo poder pessoal e atração
do Pastor: isso é Cristianismo.
Mas, para isso, não apenas
a morte, mas a ressurreição também era necessária. O Pastor realmente teve que ser
ferido como o profeta havia predito, mas é em Sua vida ressuscitada que Ele reúne
Seu rebanho de entre judeus e gentios. Jesus prosseguiu mostrando que a Sua morte
foi com a finalidade de Sua ressurreição. Ambas são vistas aqui como Seu próprio
ato. Sua morte foi Ele dar a Sua vida: Sua ressurreição foi Ele tornar a
tomá-la, embora sob novas condições. Em ambas Ele agia de acordo com o mandamento
do Pai; e fornecendo ao Pai um novo motivo para o Seu amor para com o Filho.
As palavras do Senhor,
registradas no versículo 18, estão plenamente de acordo com o caráter deste evangelho.
Conforme registrado em outros evangelhos, Ele falou repetidas vezes a Seus discípulos
sobre como Ele deveria ser entregue aos gentios, pelos principais sacerdotes e governantes,
para que fosse entregue à morte; todavia aqui Ele afirma que nenhum homem tiraria
Sua vida, pois tanto a morte como a ressurreição seriam Seus próprios atos. Os homens
fizeram a Ele aquilo que, para qualquer mero homem, tornaria a morte inevitável;
no entanto, no Seu caso, nada teria qualquer efeito, se Ele não tivesse ficado satisfeito
em dar Sua vida. Sua Divindade é enfatizada, mas também a verdadeira Humanidade
que Ele assumiu em sujeição à vontade de Deus, pois tudo estava de acordo com o
mandamento do Pai. A vida estava n’Ele e era “a luz dos homens” (Jo 1:4), mesmo quando Ele estava aqui,
mas agora Ele deve tomar a Sua vida em ressurreição, e assim Ele deveria tornar-Se
a própria vida daqueles que são
Seus no poder do Espírito, como indicado em João 20:22.
Por essas parábolas, o
Senhor forneceu aos judeus um resumo das grandes mudanças que estavam próximas como
resultado de Sua vinda como o verdadeiro Pastor no meio de Israel. O programa Divino
foi aberto a eles, mas o propósito de Deus cortou contra a fibra dos autossuficientes
pensamentos deles, e Suas palavras soaram para muitos como as palavras de alguém
que está fora de si ou algo ainda pior. Outros, impressionados com o milagre do
cego, não podiam aceitar essa opinião extrema. Como os versículos seguintes mostram,
eles tomaram o lugar de “honestos duvidosos”, mas desejavam insinuar que Sua ambiguidade
era o motivo da vacilação deles. O problema estava, porém, não em Suas palavras,
mas na mente deles. Foi assim com seus antepassados
quando a lei foi dada e “para que os
filhos de Israel não fixassem os olhos no final daquilo que se desvanecia” (2
Co 3:13 – TB); isto é, eles nunca viram o propósito de Deus nisso tudo. Ora o orgulho
religioso estava colocado como um véu na mente desses judeus e eles não podiam perceber
“o final” das palavras do Senhor. Da
mesma maneira, “o deus deste século”
impõe um véu à mente dos incrédulos hoje; não importa quão capazes e aguçados possam
ser nas questões comuns do mundo.
A demanda deles era: “Se Tu és o Cristo, dize-no-lo abertamente”.
Jesus imediatamente afirmou que Ele já lhes havia dito claramente, e que Suas obras
igualmente com Suas palavras haviam dado claro testemunho d’Ele. Então Ele falou-lhes
claramente que a incredulidade deles colocou o véu sobre os olhos deles. A evidência
estava ali clara o suficiente, mas eles não podiam ver; e o que estava por trás
desse fato era que, apesar de serem Israel nacionalmente, eles não eram o verdadeiro
Israel (Rm 9:6): eles não eram “Minhas ovelhas”,
embora fossem ovelhas dentro do aprisco judaico, Eles estavam espiritualmente mortos
e, portanto, não reagiam. Assim, Jesus lhes disse claramente não apenas a
verdade sobre Si mesmo, mas sobre eles mesmos.
Tendo colocado uma sentença
de juízo sobre eles, Ele acrescentou palavras do maior conforto e certeza para o
benefício de Suas próprias ovelhas. Por um lado, elas ouvem a Sua voz e seguem-No
e por outro lado, Ele as conhece e lhes dá a vida eterna. Isso garante que elas
nunca perecerão sob o julgamento de Deus, e nenhum poder criado pode tirá-las da
mão do Pastor. Esta garantia é reforçada pela perfeita unidade que subsiste entre
o Filho e o Pai. O Filho tinha tomado o lugar de sujeição na Terra e o Pai permaneceu
“maior do que tudo” (TB) no céu, mas
isto não impediu a unidade d’Eles. Estar nas
mãos do Filho envolvia estar nas mãos do Pai, e o propósito da Divindade em assegurar
as ovelhas é garantido tanto pelo Filho quanto pelo Pai. Somos confrontados com
o mesmo fato glorioso nessa importante passagem em Romanos 8:29-39.
Essas palavras levaram
os judeus a intenções homicidas. Eles não entenderam o desvio deles, mas eles viram
que, dizendo: “Eu e o Pai somos um”,
Ele estava reivindicando igualdade com Deus. Poderia ter sido um pouco menos ofensivo
se Ele colocasse o Pai em primeiro lugar dizendo: “O Pai e Eu”; mas não, era “Eu e o Pai”. Isso era intolerável para
eles, pois não havia como alegar engano com palavras como essas. Para eles, era
uma blasfêmia atroz – um homem fazendo-se Deus. Aceitamos Suas palavras no espírito
de adoração, pois sabemos que Ele era verdadeiramente Deus, embora tenha Se
feito Homem. Revogamos os termos da acusação deles e encontramos nas Suas
palavras a verdade que salva as almas.
Em sua resposta, Jesus
referiu-Se às Suas próprias palavras: “Sou
Filho de Deus”, de modo a identificá-las com a acusação deles de fazer a Si
mesmo Deus. Ele não defendeu Sua afirmação por uma de Suas próprias afirmações enfáticas,
mas por um argumento baseado nas Escrituras deles. Aqueles reconhecidos como “deuses”, no Salmo 82:6, eram autoridades
“a quem a palavra de Deus foi dirigida”. Aqu’Ele que havia sido
separado e enviado ao mundo pelo Pai era a própria Palavra – “o Verbo feito carne”. Quão grande a diferença!
Não foi blasfêmia, mas verdade sóbria quando Ele disse: “Eu sou Filho de Deus”. Além disso, Suas obras deram testemunho de Sua
reivindicação, como sendo inconfundivelmente as obras de Deus. Elas expuseram claramente
o fato de que o Pai estava n’Ele, vividamente declarado e revelado; e Ele estava
no Pai, quanto à vida e natureza essenciais. Uma vez que isso é conhecido e crido,
não há dificuldade em recebê-Lo como o Filho de Deus, pois ambas as declarações
estabelecem o mesmo fato fundamental, embora em palavras diferentes.
Mas ainda não havia chegado
o momento do ódio assassino deles ter seu cumprimento, e em Sua retirada para o
lugar do batismo de João, além do Jordão, a fé de vários tornou-se manifesta. O
testemunho de João foi lembrado e a verdade de suas palavras foi reconhecida. João
foi o último profeta da antiga dispensação e, em meio a suas ruínas, não era
época de milagres. Chegou a ocasião e em medida completa, imediatamente o Cristo,
o Filho de Deus, apareceu. Ainda assim, João deu um testemunho verdadeiro, fiel
e inabalável de Cristo, que era melhor do que milagres. Estamos também no tempo
final de uma dispensação, portanto, não ansiemos por milagres, mas imitemos a fidelidade
de João em testemunho. Se pudesse ser dito de qualquer um de nós, diante do tribunal
de Cristo, que todas as coisas que falamos de Cristo são VERDADEIRAS – isso seria
realmente um elogio!
[1] N. do T.: “Aprisco” (ou curral), segundo o Concise Bible Dictionary, é o sistema divinamente designado de
ordenanças judaicas que formava o recinto no qual o Senhor entrou pela porta, a
fim de encontrar Suas próprias ovelhas e conduzi-las para fora. Os crentes
gentios foram acrescentados a elas, e eles se tornaram um rebanho (e não ‘um
aprisco’) com um Pastor, o próprio Senhor (Jo 10:1, 3, 16). Não há mais um
aprisco na Terra para os que são de Cristo. Eles foram tornados a Igreja, a
saber, o único rebanho.
[2] N. do T.: Nas versões em
português a palavra grega “dei” no
capítulo 3 do evangelho de João (ARC) é traduzida como “necessário” (vs. 3, 30) e “importa
que” (v. 14).